gr. kheir, kheiros = mão.
Quando se passa da filosofia de Platão para a de Aristóteles, deixa-se uma filosofia onde tudo é explicado em função de um devir cosmogónico, para se ficar na presença de uma filosofia onde tudo é explicado em função de um devir cósmico. Decerto que a filosofia de Aristóteles aponta para uma teologia1; no entanto, enquanto em Platão o mito é aquilo com que o filósofo tenta temporalizar uma verdade eterna numa narrativa que nos dá alguma luz sobre o curso das coisas, Aristóteles, ao estudar o devir, recusa-se a separar a Forma do real e vê no movimento um fenômeno físico. Também o estudo da mudança implica, para Aristóteles, as investigações e os inventários metódicos de uma história natural.
Isto explica que Aristóteles clarifique a condição do homem e o problema da origem das técnicas com um brilho bem diferente do que se encontra em Platão.
Os mitos do Protágoras2 e da Política3 representam-nos o homem como um ser fraco e desvalido, sem indústria e sem arte, distinguindo-se unicamente dos outros animais pelo privilégio que tem de acreditar na existência dos deuses4. Este ser permanece nu e desamparado até receber do céu o fogo, as técnicas e as sementes. Para Aristóteles, pelo contrário, o homem é o melhor apetrechado de todos os seres vivos, e isso precisamente porque possui uma mão: «Os que dizem que o homem não é bem constituido e que é o mais despojado dos animais (porque, diz-se, está descalço, está nu e não tem armas para combater), estão errados. Porque os animais não têm senão um único meio de defesa e não lhes é possível trocá-lo por outro, mas são forçados, por assim dizer, a manter-se calçados para dormir e para fazer seja o que for, e nunca devem baixar a couraça que têm à volta dos seus corpos, nem trocar a arma que lhes coube em sorte. O homem, pelo contrário, possui numerosos meios de defesa e é-lhe sempre fácil permutá-los, e mesmo ter a arma que quer, quando a quer. Pois a mão torna-se garra, presa, corno, ou espada, ou qualquer outra arma ou utensílio. Pode ser tudo isto porque é capaz de tudo agarrar e tudo segurar.»5
Eis-nos, portanto, perante uma filosofia que, apesar de todo o desprezo que aparenta face ao trabalho manual, j á não vê a técnica como uma espécie de dom outorgado aos homens por deuses compassivos, mas como uma conquista da mão. Porque pode mudar de utensílio e ter, assim, uma actividade politécnica, a mão dá ao homem a possibilidade de se tornar senhor da natureza.
E assim a mão serve o homem; mas se o serve, é sobretudo porque ele próprio se serve dela e porque ele é capaz de o fazer, pois contrariamente ao que Anaxágoras pensava, o homem é o mais inteligente dos seres vivos porque possui uma mão6. Se, de acordo com a célebre definição, a mão é «um instrumento de instrumentos»7, é porque tem a possibilidade de escolher e de agarrar utensílios e, sobretudo, porque é em si mesma um utensílio à disposição da inteligência. «Com efeito, o ser mais inteligente é o que é capaz de utilizar bem o maior número de utensílios: ora, a mão não parece ser apenas um utensílio, mas sim vários. Porque ela é, por assim dizer, um utensílio que substitui os outros. Foi, portanto, ao ser que é capaz de adquirir o maior número de técnicas que a natureza deu o utensílio seguramente mais útil, a mão.»8
Por conseqüência, se a mão é, de facto, o órgão que está na origem de todas as técnicas graças às quais o homem pode modificar a natureza, imitando os artifícios desta, não se pode esquecer que a mão não é de forma alguma uma aquisição do homem, mas um verdadeiro dom da natureza.
A mão só é mão porque está viva e porque está ao serviço da inteligência, que não é senão o acto que a move. E por isso que Aristóteles insiste neste ponto, sublinhando que uma mão em bronze não é uma mão, porque é incapaz de desempenhar a sua função,9 tal como um dedo morto, que de dedo já só tem o nome10; «com efeito, não é a mão, em termos absolutos, que é uma parte do homem, mas sim e apenas a mão capaz de fazer o seu trabalho, ou seja, a mão animada; inanimada ela não é parte do homem.»11 E preciso, portanto, que se diga que, no fundo, não é verdadeiramente a mão quem maneja, mas sim a alma que a dirige e que, enquanto tal, é análoga à mão.12
No entanto, Aristóteles descreve minuciosamente a mão humana, para mostrar bem que ela se distingue da pata do animal; e o autor da História dos Animais pode considerar-se como o pai da anatomia comparada. Depois de descrever sumariamente a mão do homem, ao falar do tronco e dos membros13, Aristóteles opõe a mão humana à do macaco que, no entanto, se lhe assemelha. As mãos, os dedos e as unhas do macaco têm um «aspecto mais bestial»14; além disso, e sobretudo, o macaco serve-se das suas pretensas mãos como os outros animais se servem dos pés; de facto, o macaco passa mais tempo a quatro patas que de pé — é, portanto, um quadrúpede —, os seus pés parecem-se com as mãos e formam uma espécie de composto de mão e pé.15 Assim, no macaco a mão não existe em estado puro, pois a função da mão não é normalmente a de suportar o peso do corpo — uma vez que é da natureza do homem manter-se erecto16 — mas sim a de agarrar e de segurar.17
Partindo da idéia de que a mão foi adaptada às suas funções, Aristóteles justifica a sua anatomia, à medida que a descreve: os dedos e as suas articulações; o polegar, sem cujas funções a mão não seria o que é; as unhas que protegem as extremidades dos dedos; as articulações do braço que se dobram em sentido inverso ao das patas anteriores dos quadrúpedes, permitindo à mão estar e manter-se à disposição da inteligência humana. A organização de um tal orgão não pode, por isso, ser compreendida se não se fizerem intervir as causas finais para a explicar18: foi para preencher as funções que a definem que a natureza, que nada faz em vão, deu à mão a estrutura funcional que lhe é própria. A anatomo-fisiologia da mão — ou, para falar em termos aristotélicos, a sua natureza — possui, portanto, particularidades preciosas e inimitáveis que conferem ao homem uma superioridade sobre os outros seres vivos. E isso, graças à finalidade que rege todas as coisas.
Cf. Metafísica, E.l, 1026 a 20. ↩
Protágoras, 321 c seg. ↩
Política, 21A c seg. ↩
Protágoras, 322a. ↩
As Partes dos Animais, IV, 10, 687 a 24. Cf. igualmente: Cícero, De Natura Deorum, iiv. II, LX, 150; in Les stoïciens, textos traduzidos por Émile Bréhier, editados sob a direcção de P.-M. Schuhl. Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1962, p. 462. ↩
Op. cit., IV, 10, 687 a 10. ↩
Da Alma, III, 8, 432 a 1. ↩
Partes dos Animais, IV, 10, 687 a 19 ↩
Op. cit., I, 1 640 b 35. ↩
Metafísica, Z, 10, 1035 b 24. ↩
Op. cit., Z, II, 1036 b 30. ↩
Da Alma, III, 8, 432 a 1. ↩
História dos Animais, I, 15. ↩
Op. cit., II, 8, 502 b 24. ↩
Op. cit., II, 8, 502 b 16. ↩
As Partes dos Animais, IV, 10, 6087 a 6 ↩
Op. cit., II, 646, b 24; IV, 10, 687 b 5. ↩
Op. cit., I, 1, 646 b 28. ↩