Como conceber o serviço do Estado

Cálicles — Porém os de hoje, Sócrates, estão muito longe de haver realizado os empreendimentos que conseguiu levar a cabo qualquer dos antigos que quiseres apontar.

Sócrates — Mas, meu grande amigo, eu também não os censuro como servidores da cidade; pelo contrário, parece mesmo que foram mais diligentes do que os de agora e mais hábeis no empenho de alcançar para a cidade o que ela desejasse. Porém, no que diz respeito a mudar esses desejos e a resistir-lhes, valendo-se da persuasão e da violência na adoção de medidas indicadas para deixar melhores os cidadãos, para ser franco, em nada se diferençaram dos de hoje; no entanto, esse é o único oficio do verdadeiro cidadão. Com relação a construir navios, muralhas, estaleiros e tudo o mais do mesmo gênero, estou de acordo contigo, que na sua consecução foram mais hábeis do que os de agora. Porém estamos nós tornando ridículos, eu e tu, com esta discussão: durante todo o tempo em que conversamos, não paramos de girar em torno do mesmo ponto, sem entender nenhum de nós o que o outro queria dizer. Contudo, estou certo de que por mais de uma vez concordaste e reconheceste que há dois modos de tratar o corpo e a alma; um é servil, e consiste em obter o de que necessita o corpo: alimentos, se tem fome; bebidas, quando manifesta sede; roupas, cobertas, calçados, quando sente frio, e assim tudo o mais que o corpo possa desejar. Muito de caso pensado recorro sempre aos mesmos exemplos, para que me compreendas com facilidade. Os indivíduos que fornecem todos esses artigos, quer seja o comerciante a varejo ou o atacadista, quer seja o fabricante de todos eles: o padeiro, o cozinheiro, o tecelão, o sapateiro, o curtidor, não seria de admirar que se considerem e sejam considerados pelos outros como encarregados dos cuidados do corpo, a saber, por todos os que ignoram que além dessas artes há a da ginástica e da medicina, que zela verdadeiramente do corpo e à qual compete comandar todas as outras artes e empregar os seus produtos, visto conhecer o que nos alimentos e nas bebidas é vantajoso ou prejudicial para a integridade do corpo, o que todas as outras ignoram. Por isso mesmo, todas elas são consideradas servis, baixas e verdadeiramente escravas no que respeita ao tratamento do corpo, ao passo que a ginástica e a medicina, com todo o direito, são tidas na conta de senhoras das demais. Estou certo de que me compreendes, quando afirmo que o mesmo é válido para a alma, e que concordas comigo como quem apreendeu bem o meu pensamento. No entanto, pouco depois vens dizer-me que em nossa comunidade há cidadãos nobres e capazes; mas quando te peço que nos apontes, indicas pessoas que se comportam com relação à política exata mente como, se à minha pergunta a respeito da ginástica, que homens capazes possuímos para o tratamento do corpo, me indicasses com toda a seriedade Teário, o padeiro, e Miteco, o cozinheiro que escreveu o Livro da Cozinha Siciliana, e Sarambo, o taberneiro, como sendo todos eles habilíssimos zeladores do corpo, porque um prepara admiravelmente pães, o outro comidas, e o terceiro, vinho.

Certamente te revoltarias se eu te dissesse: Amigo, de ginástica não entendes patavina; só me enumeras indivíduos servis, que apenas cuidam de favorecer os apetites dos homens, mas que nada sabem do que seja bom e belo a esse respeito, podendo acontecer que encham e engordem o corpo de seus clientes e até sejam elogiados por eles, mas acabarão por estragar-lhes as carnes que tinham antes. Estes, também, por ignorância, não incriminaram os que os tratam dessa maneira, para considerá-los causadores de suas doenças e da perda da antiga corpulência. Porém, se acontecer qualquer de seus conhecidos dar-lhes algum conselho, depois de ter sido provocada a doença por tanto abuso contra a saúde, a esses é que eles acusam e repreendem, e até mesmo maltratam, se se lhes oferecer oportunidade para isso, ao passo que só tem elogios para os outros, os verdadeiros causadores de seus males. Neste passo, Cálicles, procedes exatamente como eles. Elogias os homens que alimentavam da maneira que eu disse os cidadãos e satisfaziam a todos os seus desejos, e aos quais atribuem a glória de haver deixado grande esta cidade. Porém que se trata de inchação, e que internamente ela se encontra ulcerada, isso os cidadãos não percebem. Pois, sem pensar na temperança e na justiça, aqueles encheram a cidade de portos, estaleiros, muralhas, tributos e outras nugas do mesmo gênero. Mas, quando ocorrer o surto da doença, todos acusarão as pessoas que lhes derem conselhos, e só terão elogios para Temístocles, Cimão e Péricles, que foram, no entanto, os verdadeiros causadores de todas essas calamidades. É até possível que te inculpem, se não te precatares, ou ao meu amigo Alcibíades, logo que as novas aquisições fizerem que eles percam as antigas, conquanto não sejais, realmente, fomentadores de seus males, porém, quando muito, cúmplices.