CRI 46b-49e: Recusa de Sócrates

Sócrates- Querido Critão! Quão precioso o teu ardor, se alguma retidão o acompanhasse! Não sendo assim, quanto mais insistente, tanto mais penoso. Temos, pois, de examinar se devemos proceder como queres ou não. Quanto a mim, não é de agora, sempre fui deste feitio: não cedo a nenhuma outra de minhas razões, senão à que minhas reflexões demonstram ser a melhor. As razões que alegava no passado, não as posso enjeitar agora em vista de minha sorte presente; elas se me apresentam como que inalteradas; são as mesmas de antes as que estou respeitando e acatando; se nestas conjunturas, não temos outras melhores para alegar, fica certo de que não cederei absolutamente a tuas instâncias; ainda que, com mais ameaças que as atuais, nos acene o poderia da multidão, como a crianças, com o espantalho das prisões, mortes e confisco de bens. Como, portanto, faremos tal exame o mais acuradamente possível? Será retomando, em primeiro lugar, aquela razão que alegas a propósito das opiniões? Estávamos certos ou errados ao repetirmos que das opiniões umas devemos acatar, outras não? Ou antes, de eu ter de morrer, era acertado dizê-lo, mas agora se patenteou – não é assim? Que falávamos por falar, mas não passava de brincadeira, futilidade? Francamente, Critão, desejo examinar contigo se aquela razão se nos apresentará um tanto modificada em vista da minha situação, ou idêntica, e se as mandaremos às urtigas, ou lhe obedeceremos. Costumavam dizer, creio eu, os que presumem falar seriamente, mais ou menos o mesmo que eu próprio dizia há pouco: que, das opiniões que os homens formam, a umas se deve grande acatamento, a outras não. Pelos deuses, Critão, não te parece uma boa norma? Porque tu, tanto quanto alcançam as previsões humanas, não estás em vias de morrer amanhã, nem poderia ser abalado o teu juízo pela adversidade presente. Portanto, reflete; não achas acertado dizer que nem a todas as opiniões dos homens se deve acatamento, mas a umas sim e outras não? E não às de todos, mas às de uns sim e às de outros não? Que dizes? Não é com razão que se diz isso?

Critão- É com razão.

Sócrates- Logo, acatar as boas, não as ruins.

Critão- Perfeitamente.

Sócrates- Boas não são as dos judiciosos, ruins, as dos sandeus?

Critão- Como não?

Sócrates- Ora bem, em que sentido se faziam tais distinções? Um homem que pratica a ginástica e segue aquela norma dá atenção ao louvor, à censura, ao parecer de toda a gente ou somente ao de quem porventura é médico ou instrutor de ginástica?

Critão- Só ao deste.

Sócrates- Assim, deve temer as censuras e folgar com o louvor de único e não da multidão.

Critão- Evidentemente.

Sócrates- Deve, não é assim? Conformas suas práticas, seus exercícios, sua alimentação, sua bebida, somente com a opinião do mestre e entendido, de preferência a de todos os demais juntos.

Critão- Assim é.

Sócrates- Bem. Se desobedece àquele único, se desacata ao seu parecer e ao seu louvor, para atender ao que diz a multidão que de nada entende, não sofrerá nenhuma conseqüência ruim?

Critão- Como não?

Sócrates- Qual é essa conseqüência ruim, que extensão tem e onde atinge o desobediente?

Critão- Está-se vendo que no corpo, porque é este que ele arruina.

Sócrates- Dizes bem. Portanto, Critão, para não passarmos tudo em revista, com tudo mais se dá o mesmo. Agora, quando ao justo e ao injusto ao freio e ao belo, ao bem e ao mal, objetos desta nossa deliberação, devemos nós seguir a opinião da multidão e temê-la, ou a do único, se algum existe, entendido, a quem devemos respeitar e temer mais do que a todos os demais juntos? se não obedecermos ao qual, corromperemos e danificaremos aquilo que melhora coma justiça e se arruína com a injustiça? Ou isto não tem cabimento?

Critão- Acho que tem, Sócrates.

Sócrates- Ora, pois, se aquilo que melhora com um regime saudável e se corrompe com um regime insalubre nós arruinarmos obedecendo à opinião que não é a dos entendidos, é-nos possível viver com essa parte arruinada? É ao corpo que nos referimos, ou não?

Critão- Sim.

Sócrates- Então, é-nos possível viver com um corpo em más condições, arruinado?

Critão- De modo nenhum.

Sócrates- Podemos, porém, acaso viver depois de arruinar aquela parte que a injustiça danifica e a justiça beneficia? Ou considerarmos de menos valor que o corpo, aquela parte de nosso ser, seja qual for, com que se relaciona a injustiça e a justiça?

Critão- De modo nenhum.

Sócrates- De maior valor, então?

Critão- Muito maior.

Sócrates- Logo, meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a Verdade em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nos inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nos matar.

Critão- Isso é claro, Sócrates, haverá quem diga.

Sócrates- Decerto. Mas, meu admirável amigo, essa razão que acabamos de rever ainda me parece substancialmente a mesma de antes. Examina também se continua de pé para nós este outro princípio: que não devemos dar máxima importância ao viver, mas ao viver bem.

Critão- Continua.

Sócrates- E que viver bem, viver com honra e viver conforme a justiça é tudo um, continua de pé, ou não?

Critão- Continua.

Sócrates- Por conseguinte, partindo desses princípios nos quais concordamos, devemos averiguar se é justo que eu tente sair daqui sem permissão dos atenienses, ou injusto: se se provar que é justo, tentemos; se não, desistamos. As considerações que aduzes, de dispêndio de dinheiro, reputação, criação de filhos, Critão, cuidado não sejam na realidade especulação próprias de quem, com a mesma facilidade, mataria, e se pudesse, ressuscitaria, sem nenhum critério a saber, a multidão. Nós, porém, pois que assim reside a razão, não sujeitemos à consideração nada além do que há pouco dizíamos: se será procedimento justo dar dinheiro aos que me vão tirar daqui, suborná-los, nós mesmos promovendo a fuga e fugindo, ou se, na verdade, procederemos com injustiça em todos esses atos, se se provar que cometeremos injustiça, não será absolutamente mister indagar se devo morrer, ficando quieto aqui, ou sofrer qualquer outra pena, antes do que praticar uma injustiça.

Critão- Acho que falas com acerto, Sócrates; vê, pois o que devemos fazer.

Sócrates- Vejamo-lo juntos, meu caro, e se puderes de algum modo refutar-me, refuta-me e te obedecerei; Se não, cessa desde logo, meu boníssimo amigo, de insistir no mesmo assunto, de que preciso sair daqui contrariando os atenienses; porque dou muita importância a proceder com o teu assentimento e não mau grado teu. Vê, pois, se te parecem satisfatórios os argumentos básicos deste exame e procura responder a minhas perguntas com a maior sinceridade.

Critão- Pois não, procurarei.

Sócrates- Asseveramos que não se deve cometer injustiça voluntária em caso nenhum, ou que em alguns casos se deve, e noutros não? Ou que de modo algum é bom nem honroso cometê-la, como tantas vezes no passado conviemos? e é o que acabamos de repetir. Porventura, todas aquelas nossas convenções de antes se entornaram nestes poucos dias e, durante tanto tempo, Critão, velhos como somos, em nossos graves entretenimentos não nos demos conta de que nada diferíamos das crianças? Ou, sem dúvida alguma é como dizíamos, quer o admita a multidão, quer não? Mais: ainda que tenhamos de experimentar momentos quer ainda mais dolorosos, quer mais suaves, o procedimento injusto, em qualquer hipóteses, não é sempre, para quem o tem, um mal e uma vergonha? Afirmamos isso ou não?

Critão- Afirmamos.

Sócrates- Logo, jamais se deve proceder contra a justiça.

Critão- Jamais, por certo.

Sócrates- Nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça, como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre inadmissível.

Critão- Parece que não.

Sócrates- E daí? Devemos praticar maldades ou não, Critão?

Critão- Não devemos, sem dúvida, Sócrates.

Sócrates- Adiante. Retribuir o mal que nos fazem é justo, como diz a multidão, ou injusto?

Critão- Absolutamente injusto.

Sócrates- Sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma injustiça, não há diferença nenhuma.

Critão- Dizes a verdade.

Sócrates- Em suma, não devemos retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause. Cautela, porém, Critão, ao admitires esses princípios, não o faças em contradição com o teu pensamento, pois sei que essa opinião é e será de alguns poucos. Entre os que a adotam e os que a repelem não existe um ânimo comum; fatalmente se a quererão mal uns aos outros, ao verem os propósitos uns dos outros. Portanto, considera muito bem tu se comungas a minha opinião, se concordas comigo e se nossa deliberação partirá do princípio de que jamais é acertado cometer injustiça, retribuí-la, vingar pelo mal que fazemos o mal que nos fazem, ou se diverges e não co-participas do princípio. Quanto a mim, essa é opinião minha antiga, que ainda agora mantenho. Tu, porém, se tens outro sentir, fala, dá-me a conhecer; se perseveras no de outrora, presta atenção ao que aí decorre.

Critão- Persevero, concordo contigo; por isso, prossegue.