O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme
O “demônio” de Sócrates suscitou, por si só, uma importante bibliografia. E não sem razão, pois o homem se ilumina a partir desta inspiração que, interiorizando as potências estranhas e objetivando as exigências interiores do espírito, mantém em equilíbrio a balança entre a criatura humana e a divindade. Tenhamos, porém, cuidado com este equilíbrio, pois ele se realiza então pela primeira vez na história da alma ocidental, razão pela qual despertou a inquietação e incorreu na hostilidade dos Atenienses. A crença nos daimones, como espíritos intermediários entre os deuses e os homens, é, com efeito, tradicional em Atenas, e seu demônio jamais teria sido motivo para acusar Sócrates de ser um “fabricante de deuses” se sua intervenção não tivesse aparecido menos “como um preceito inculcado ao espírito humano por uma força estranha” que “como uma lei absoluta do próprio espírito”, para retomar os termos de que se serviu Hegel a respeito da tarefa prescrita pelo deus de Delfos. Mas, por outro lado, subjetivando completamente essa voz interior, destrói-se-lhe caráter religioso e desnaturar-se a situação socrática. Já para certos pré-socráticos, o daimon era apenas o “gênio” próprio de cada um, o conjunto de disposições pessoais. Disso encontramos eco na obra eclética de Apuleu sobre a questão. O racionalismo moderno se coloca no prolongamento desta tradição, cortando o demônio de Sócrates de toda transcendência; um passo a mais e ele se transformará numa anomalia para os patologistas, numa alucinação ou num fenômeno histérico. Por que não? Mas, mesmo se não se chegar a semelhantes excessos, se passará a considerá-lo apenas como uma metáfora que designa um processo psicológico banal (a “inspiração” no sentido mais profano), quando não um simples efeito de “palavra interior”, como diz V. Egger. Nesta perspectiva, ele deixa de ser o instrumento de uma comunicação e encerra Sócrates em si mesmo, numa espécie de autarcia.
Ora, não é isto o que os textos nos sugerem. A advertência demoníaca, como a do oráculo do qual não devemos separá-la, seguindo nisto o exemplo do próprio Sócrates, sobrevém sempre inopinadamente e começa por ser afetada de certo coeficiente de ininteligibilidade. Em primeiro lugar é captado e somente depois é elucidado. Só depois do caso passado é que Sócrates explica porque seu espírito familiar, esse “algo de divino” (daimonion ti, como diz Platão – vide Daimones), não o impediu de se apresentar perante o tribunal, nem de falar de modo a indispor contra si os juizes, mas que, pelo contrário, se opuzera duas vezes a que preparasse a própria defesa; antes, pois, de compreender que sua condenação não era um mal, inclinara-se diante de uma injunção ao mesmo tempo íntima e supra-racional.
Os daimones da velha Atenas dominam do exterior as almas que mantêm pelas trevas dionisíacas. O de Sócrates, porém, é perfeitamente apoliniano. (Cumpre não esquecer que é Apoio que atrai para o lado solar a adivinhação reservada a princípio na Grécia apenas às tenebrosas divindades chtonianas). Ele é simultaneamente interior e exterior à alma que ilumina, a fim de se lhe impor, não um ser intermediário, mas uma palavra medianeira. “Não apresento um deus novo quando falo de meu demônio. Creio nesta voz divina como vós credes”… Mas a Atenas de Anytos não podia compreender este misticismo da consciência clara que reconcilia a obediência e a posse de si por si. Para ela não existe nada entre o ateísmo de Pródicos e a piedade conformista. Acusa, então, Sócrates de fabricar deuses para uso pessoal. Talvez possamos compreendê-la melhor se pensarmos que os Padres da Igreja discutiram sobre a natureza diabólica ou angélica desse “demônio”. E esta é a razão porque Sócrates foi uma pedra de escândalo para Atenas. Escândalo para a cidade aquilo que Sócrates viu simplesmente como uma contradição necessária, a saber, ser ao mesmo tempo um homem pio e o anti-Eutifron (v. Eutifron).