O duplo registro da palavra cantada pode ser esclarecido, se for colocado em relação com um traço fundamental da organização da sociedade micênica. Ao que parece, com efeito, o sistema palaciano era dominado por um personagem real, encarregado das funções religiosas, econômicas e políticas, mas junto ao rei todo-poderoso havia um “chefe do Laos” que comandava os homens especializados no ofício das armas. Neste estado centralizado, o grupo dos guerreiros formava uma casta privilegiada com um estatuto particular. Se o segundo registro da palavra corresponde perfeitamente a este grupo social especializado nas atividades guerreiras, que relação pode existir entre as teogonias e o personagem real? As pesquisas sobre a pré-história das teogonias gregas permitem responder a esta questão. Com efeito, se Hesíodo representou, durante muito tempo, o primeiro testemunho de uma literatura teogônica, hoje em dia já não nos oferece mais do que uma longa linhagem de relatos, sobre os quais os testemunhos orientais hititas e fenícios nos permitem esclarecer alguns pontos. O combate de Zeus contra os Titãs e a batalha contra Tifeu sugeriram a F. M. Cornford valiosas comparações com as teogonias da Babilônia e, mais particularmente, com o combate de Marduk contra Tiamat. A comparação revelou-se extremamente instrutiva, pois a Babilônia oferece o exemplo de uma civilização onde o relato mítico está ainda vivo, onde se articula estreitamente a um ritual. Todos os anos, no quarto dia da festa real de Criação do Ano-Novo, o rei reproduzia o combate ritual que repetia a façanha realizada por Marduk contra Tiamat. Ao mesmo tempo em que se desenrolava o ritual, recitava-se o poema da Criação, o Enuma Elis. Assim, J.-P. Vemant pôde mostrar que, nas cosmogonias e nas teogonias gregas, a ordenação do mundo era inseparável dos mitos de soberania, e que os mitos de emergência, ao mesmo tempo que contavam a história das gerações divinas, colocavam em primeiro plano o papel determinante de um rei divino, que, após numerosas lutas, triunfa frente a seus inimigos e instaura definitivamente a ordem no Cosmos. Sem dúvida, o poema de Hesíodo, principal testemunho na Grécia desse tipo de relato, marca precisamente sua decadência, pois se trata de uma obra escrita ou, pelo menos, ditada, e não mais um relato oral, pronunciado por ocasião de uma festa ritual. Não obstante, teríamos na pessoa de Hesíodo o único e último testemunho de uma palavra cantada, consagrada ao louvor do personagem real, em uma sociedade centrada na soberania, tal como nos parece oferecer o exemplo a civilização micênica. Mais uma vez, este personagem real é, tão-somente, o próprio Zeus. Nesse nível, o poeta é, antes de tudo, um “funcionário da soberania”: recitando o mito de emergência, colabora diretamente com a ordenação do mundo.
É no poema de Hesíodo que se atesta a mais antiga representação de uma Aletheia poética e religiosa. Qual é, com efeito, a função das Musas, segundo os termos da teologia da palavra que se desenvolve na Teogonia? As Musas reivindicam, com orgulho, o privilégio de “dizer a verdade” (alethea gerysasthai). Esta Aletheia toma inteiramente seu sentido próprio na sua relação com a Musa e a Memória; de fato, as Musas são aquelas que “dizem o que é, o que será, o que foi”; são as palavras da Memória. O próprio contexto da Teogonia induz, pois, a determinar a estreita solidariedade entre Aletheia e Memória e, inclusive, leva a não reconhecer nessas duas potências religiosas mais do que uma única e mesma representação. Contudo, será somente através do estabelecimento das noções que dominam o segundo registro do poeta que a Aletheia de Hesíodo tomará toda sua significação. O segundo registro da palavra poética está inteiramente consagrado ao louvor das façanhas guerreiras. Se o funcionamento deste tipo de palavra cantada não nos foi diretamente atestado pela civilização micênica, podemos facilmente concebê-lo observando uma sociedade grega arcaica como a antiga Esparta, totalmente dominada pelo grupo dos guerreiros, entregue por inteiro aos trabalhos da guerra. Duas potências temíveis fazem a lei na antiga Esparta: o Louvor e a Censura. Esta sociedade que introduziu o princípio da igualdade entre todos os cidadãos não conhece outra diferença a não ser aquela que advém do elogio e da crítica. Cada um exerce através deles um direito de observar o outro e, reciprocamente, cada um se sente sob o olhar do outro. Esse direito ao olhar se exerce em todos os níveis do corpo social: em algumas festas, como as Parteneias, as jovens tinham o privilégio de lançar zombarias àqueles que tivessem cometido alguma falta; ao contrário, faziam um longo elogio público, caso os jovens fossem dignos de merecê-lo. Fortalecidos com a autoridade que lhes conferia uma sociedade organizada segundo o princípio de classes etárias, os anciãos, que passavam grande parte de seus dias no “parlatório”, consagravam a quase totalidade de seu tempo livre ao elogio das boas ações e à crítica das más. Em uma sociedade agonística, que valoriza a excelência do guerreiro, o domínio reservado ao louvor e à censura, é, precisamente, o dos atos de bravura. Neste plano fundamental, o poeta é o árbitro supremo: não é mais, neste momento, um funcionário da soberania, está a serviço da comunidade dos “semelhantes” e dos “iguais”, daqueles que têm em comum o privilégio de exercer o ofício das armas. Em uma sociedade guerreira como a antiga Esparta, as Musas ocupam, com pleno direito, um lugar importante. E são duplamente honradas, primeiro como protetoras das flautistas, das liristas e das citaristas, já que a música faz parte da educação espartana, e as marchas e encargos militares se fazem ao som da flauta e da lira. Mas as Musas tem, acima de tudo, uma outra função fundamental: se antes de cada encontro os reis oferecem-lhes um sacrifício, é para que seus “semelhantes” se lembrem dos julgamentos que serão feitos sobres eles, preparando-os, assim, para enfrentar o perigo e cumprir as façanhas “dignas de serem celebradas”, as façanhas que lhes custarão uma “memória ilustre” (mneme euklees).