Dioniso

Mircea Eliade: História das Crenças e das Ideias Religiosas

Na época helenística e romana, o deus grego mais popular era Dioniso. O seu culto público foi “purificado” e espiritualizado, com a eliminação do êxtase (que continuou, entretanto, a desempenhar um papel nos Mistérios Dionisíacos)1. Além disso, a mitologia de Dioniso era a mais viva. As artes plásticas, sobretudo as decorações dos sarcófagos, inspiravam-se amplamente em episódios mitológicos famosos, em primeiro lugar os acontecimentos da Infância de Dioniso (o nascimento miraculoso, a joeira) e a redenção de Ariadne, seguida do hieros gamos. A mitologia, os locais de culto, os monumentos evocavam da melhor forma possível a dupla natureza de Dioniso, nascido de Zeus e de uma mortal, perseguido e, não obstante, vitorioso, morto e ressuscitado. O seu túmulo ficava em Delfos, mas a sua ressurreição figurava em muitos monumentos. Conseguira colocar sua mãe entre os Olímpicos; o maior dos seus feitos, no entanto, fora trazer a sua futura esposa Ariadne de volta dos Infernos. Ora, na época helenística, a figura de Ariadne simbolizava a alma humana. Em outros termos, Dioniso não só libertava a alma da morte, mas unia-se a ela em núpcias místicas (Schneider, op. cit., II, p. 802).

A popularidade de Dioniso é também difundida pelas sociedades dos Tekhnitai ou Artistas dionisíacos, associações atestadas em Atenas já por volta de ∼1300. Trata-se de confrarias pararreligiosas2, mas sem caráter de Mistérios. Quanto aos Mistérios dionisíacos stricto sensu, já apresentamos o essencial do problema (Mistérios Dionisíacos). Lembremos que, nas Bacantes, Dioniso proclama a estrutura mistérica do seu culto e explica a necessidade do segredo iniciatório: “É proibido comunicá-los (os orgia) àqueles que não são bacantes.” — “Qual é a sua utilidade para aqueles que os celebram?”, pergunta Penteu. — “Não te é permitido sabê-lo, mas são coisas que merecem ser conhecidas” (linhas 470-74). Afinal, o segredo iniciatório foi bem guardado. Quase todos os textos referentes ao serviço litúrgico desapareceram, com exceção de alguns hinos órficos tardios. Os documentos arqueológicos da época helenística e romana são bastante numerosos, mas a interpretação do seu simbolismo, mesmo quando aceita pela maioria dos estudiosos, não chega a elucidar a iniciação propriamente dita.

Não se pode duvidar da estrutura fechada, e portanto ritual, ou seja, iniciatória, das tiases (thíasoi) dionisíacas. Uma inscrição de Cumas (início do século V) prova que as confrarias tinham os seus próprios cemitérios, onde só eram admitidos os iniciados nos Mistérios de Baco3. Pôde-se demonstrar (contra a opinião de certos estudiosos, que só viam nas cavernas dionisíacas um ambiente propício aos banquetes e festejos profanos), que tais cavernas constituíam lugares de culto. Os mais antigos testemunhos iconográficos, que datam do século VI, apresentam Dioniso deitado numa caverna, ou uma ménade dançando diante de uma enorme máscara do deus, situada no interior de uma caverna. Ora, os textos aludem às danças sagradas e aos banquetes rituais diante das cavernas dionisíacas; por outro lado, esclarecem que as cerimônias se realizam durante a noite a fim de preservar o seu segredo. No que se refere aos rituais iniciatórios, estamos reduzidos a hipóteses. Em seu ensaio sobre as cenas figuradas, Friedrich Matz, seguindo, aliás, o exemplo de outros estudiosos, concluiu que o ato central da iniciação consistia em revelar o falo, escondido numa joeira (liknon)4. Tudo leva a crer que essa cena, profusamente ilustrada, tinha uma importância ritual, mas Boyancé mostrou, a propósito, que os textos citam o liknon com referência a todas as espécies de iniciações e não apenas associado à iniciação dionisíaca.

Por outro lado, num relevo de estuque conservado no Museu de Óstia (prancha XXV de Matz), onde Dioniso e três outras personagens são designados pelos próprios nomes, a cista (kístê) traz a indicação: Mystêria. Ora, a cista contém os crepundia ou signa, isto é, os “brinquedos místicos” (pião, carrapeta, ossinhos e espelho), já atestados no século III a.C. nos papiros de Fayum (Gouroub). Foi com esses brinquedos que os Titãs lograram atrair a criança Dioniso-Zagreu, a quem depois abateram e cortaram em pedaços (cf. Mistérios Dionisíacos). Esse mito foi-nos transmitido apenas por alguns autores cristãos, mas era conhecido por dois iniciados nos Mistérios — Plutarco e Apuleio — e também pela confraria órfica do Egito helenístico5. A julgar pelos monumentos, a ostentação do falo parece ter feito parte “desses ritos um pouco assustadores que antecedem o acesso à presença do deus”6. Cuida Boyancé que “o que podia incutir no mystes a fé, a certeza de um apoio divino, capaz de assegurar-lhe, no além, um destino privilegiado, não pode ter sido a visão de um objeto como aquele” (p. 45). O ato central da iniciação era a presença divina tornada sensível pela música e pela dança, experiência que produz “a crença num elo íntimo que se estabelece com o deus”7.

Observações, sem dúvida, plenamente justificadas, mas que não aprofundam o nosso conhecimento sobre o ritual iniciatório. Em todo o caso, convém esclarecer que a ostentação do falo constituía um ato religioso, pois tratava-se do órgão gerador de Dioniso, ao mesmo tempo deus e mortal que vencera a morte. Basta que nos lembremos da sacralidade do lingam de Shiva para percebermos que, em certos contextos culturais e religiosos, o órgão gerador de um deus simboliza não somente o mistério da sua criatividade, mas exprime também a sua presença. No mundo ocidental moderno, tal experiência religiosa é decerto inacessível. Porque, ao contrário dos Mistérios, o cristianismo ignorou o valor sacramental da sexualidade. Poder-se-ia fazer a mesma observação a propósito das refeições rituais dionisíacas, quando os iniciados, coroados de flores, se entregavam a uma alegre embriaguez, considerada como possessão divina. É difícil, para nós, compreender a sacralidade de tal deleite. E, no entanto, ele antecipava a beatitude de além-túmulo prometida aos iniciados no Mistério de Dioniso8.

Textos tardios, que refletem a escatologia órfica, insistem no papel de Dioniso como Rei dos tempos novos. Embora ainda criança, Zeus fê-lo reinar sobre todos os deuses do Universo (fragmento órfico 207). A epifania da Criança divina anuncia a nova juventude do Universo, a palingenesia cósmica9. (A Criança como signo de renascimento e de renovação prolonga o simbolismo religioso do falo.) As esperanças ligadas ao triunfo de Dio-niso, e portanto a uma regeneração periódica do mundo, implicam a crença num retorno iminente da Idade de Ouro. Isso explica a popularidade do título Novo Dioniso, que foi atribuído a diversas personalidades (ou que elas se atribuíram) no limiar da nossa era10.


  1. Cf. Carl Schneider, Kulturgeschichte des Hellenismus, II, p. 801. 

  2. Cf. H. Jeanmaire, Dionysos, pp. 425 s. 

  3. Ver Franz Cumont, Les religions orientales, p. 197, fig. 12; Lux perpetua, p. 252, fig. 6; cf. ibid., pp. 405-406. 

  4. F. Matz, Dionysiake télété, p. 16. Cf. Boyancé, “Dionysiaka”, p. 35, nota 2; Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas, t. I, vol. 2, pp. 213 s. 

  5. Boyancé, “Dionysiaka”, p. 55. Sobre os crepundia, ver também R. Turcan, Les sarcophages romains à représentation dionysiaque, pp. 407 s. 

  6. Boyancé, p. 45. Cf. Turcan, “Du nouveau sur l’initiation dionysiaque”, p. 108. 

  7. Boyancé, p. 44. Outras cenas iniciatórias sâo analisadas por Turcan, Les sarcophages. .., pp. 402 s. Os célebres afrescos da Villa Item (a “Villa dei Misteri”) em Pompeia relacionam-se provavelmente com o culto dionisíaco. Mas, contra a opinião daqueles que viam nos afrescos episódios iniciatórios, cuidam certos autores que tais afrescos não apresentam os Mistérios e não ilustram o mito do deus ou as etapas de uma iniciação; cf. G. Zuntz, “On the Dionysiac Fresco in the Villa dei Misteri”, pp. 180-81. 

  8. Cf. F. Cumont, Religions orientales, p. 203; id., Symbolisme funéraire, p. 372; id., Lux Perpetua, pp. 255 s. 

  9. “O conceito de palingenesia e a ideia de que um novo deus é um deus com reaparecimento periódico não eram apenas conceitos cujas afinidades eram evidentes com o conceito que estava implícito na alternância das epifanias e nos desaparecimentos (aphanismoí) de um deus que se manifestava através das suas parusias, anuais ou bienais (trietêrides). No plano da duração cósmica, esse conceito deixa-:se transpor com facilidade na forma de um ciclo de retorno em escala igualmente cósmica” (Jeanmaire, Dionysos, pp. 413-14). Sobre o simbolismo dionisíaco da Criança, ver também Turcan, Les sarcophages…, pp. 394 s., 405 s., 433 s. 

  10. Jeanmaire (p. 416) cita Ptolomeu XI, o triunviro Antônio e, mais tarde, Trajano, Adriano, Antônio.