No decurso dos últimos cinquenta anos, a confiança do Ocidente neste monopólio da razão foi todavia abalada. A crise da física e da ciência contemporâneas minou os fundamentos — que se julgavam definitivos — da lógica clássica. O contato com as grandes civilizações espiritualmente diferentes da nossa, como a da Índia e a da China, rompeu os quadros do humanismo tradicional. O Ocidente já não pode hoje considerar o seu pensamento como sendo o pensamento, nem saudar na aurora da filosofia grega o nascer do sol do Espírito. Em uma época em que se inquieta pelo seu futuro e em que põe em dúvida os seus princípios, o pensamento racional volta-se para as suas origens: interroga o seu passado para se situar, para se compreender historicamente.
Duas datas escalonam este esforço. Em 1912, Cornford publica o seu livro From religion to philosophy, no qual pela primeira vez tenta estabelecer o liame que une o pensamento religioso e os começos do conhecimento racional. Só muito mais tarde, no fim de sua vida, voltou a ocupar-se deste problema. E é em 1952 — nove anos após a sua morte— que aparecem, agrupadas sob o título de Principium Sapientiae. The origins of greek philosophical thought, as páginas em que estabelece a origem mítica e ritual da primeira filosofia grega.
Opondo-se a Burnet, Cornford mostra que a “física” jônia nada tem de comum com o que nós designamos por ciência: ignora inteiramente a experimentação e não é tampouco o produto da inteligência observando diretamente a natureza. Transpõe, numa forma laicizada e em um plano de pensamento mais abstrato, o sistema de representação que a religião elaborou. As cosmologias dos filósofos retomam e prolongam os mitos cosmogônicos. Dão uma resposta ao mesmo tipo de pergunta: como pode emergir do caos um mundo ordenado? Utilizam um material conceituai análogo: por detrás dos “elementos” dos jônios, perfila-se a figura de antigas divindades da mitologia. Ao tornarem-se “natureza”, os elementos despojaram-se do aspecto de deuses individualizados; mas permanecem as potências ativas, animadas e imperecíveis, sentidas ainda como divinas. O mundo de Homero, ordenava-se por uma partilha, entre os deuses, dos domínios e das honras: a Zeus, o céu “etéreo” (aither, o fogo); a Hades, a sombra “nevoenta” (aer, o ar); a Posidão, o mar; aos três em comum, Gaia, a terra, onde vivem e morrem os homens1. O cosmo dos jônios organiza-se segundo uma divisão das províncias, uma partilha das estações entre forças opostas que se equilibram reciprocamente.
Não se trata de uma vaga analogia. Entre a filosofia de um Anaximandro e a Teogonia de um poeta inspirado como Hesíodo, Cornford mostra que as estruturas se correspondem até no pormenor2. Mais ainda, o processo de elaboração conceituai que tende à construção naturalista do filósofo está já em gestação no hino religioso de glória a Zeus que o poema hesíodico celebra. O mesmo tema mítico de ordenamento do mundo repete-se aí, com efeito, sob duas formas que traduzem níveis diferentes de abstração.
Ilíada, XV, 189-194. ↩
Principium sapientiae, Cambridge, 1952, pp. 159-224. A demonstração é retomada por George Thomson, Studies in ancient greek society, vol. II, The first philosophers, Londres, 1955, pp. 140-172. ↩