Nos alvores da história intelectual da Grécia, entrevê-se toda uma linhagem de personalidades estranhas para as quais Rohde chamou a atenção1. Estas figuras, semilendárias, que pertencem à classe dos videntes estáticos e dos magos purificadores, encarnam o modelo mais antigo do “Sábio”. Alguns acham-se estreitamente associados à lenda de Pitágoras, fundador da primeira seita filosófica. O seu gênero de vida, a sua investigação, a sua superioridade espiritual, colocam-nos à margem da humanidade vulgar. Em sentido estrito, são “homens divinos”; por vezes, eles próprios se proclamam deuses.
Halliday notava já a existência, em uma forma arcaica de mântica entusiástica, de uma categoria de adivinhos públicos, os demiourgoi, que apresentam a um tempo os traços do profeta inspirado, do poeta, do músico, cantor e bailarino, do médico, purificador e curandeiro2. Este tipo de adivinhos, muito diferente do sacerdote e muitas vezes oposto ao rei, projeta um vislumbre sobre a linhagem dos Arísteas, Ábaris, Hermotimo, Epimênides e Ferecides. Na verdade, todas estas personagens acumulam também as funções de adivinho, de poeta e de sábio, funções associadas que têm por base um mesmo poder mântico3. Adivinho, poeta e sábio têm em comum uma faculdade excepcional de vivência para além das aparências sensíveis; possuem uma espécie de extra-sentido que lhes descobre o acesso a um mundo normalmente interdito aos mortais.
O adivinho é um homem que vê o invisível. Conhece pelo contato direto as coisas e os acontecimentos dos quais está separado no espaço e no tempo. Uma fórmula define-o de modo quase ritual: um homem que sabe todas as coisas passadas, presentes e futuras4. Fórmula que se aplica igualmente ao poeta inspirado, com a simples diferença de que o poeta tende sobretudo a especializar-se na exploração das coisas do passado5. No caso de uma poesia séria, visando menos o divertimento do que a instrução, as coisas do passado que a inspiração divina faz ver ao cantor, não consistem, como em Homero, em um catálogo exato de personagens e de acontecimentos humanos, mas, como em Hesíodo, na narração verídica das “origens”: genealogias divinas, gênese do cosmo, nascimento da humanidade6. Divulgando o que se oculta nas profundidades do tempo, o poeta revela na própria forma do hino, da encantação e do oráculo, uma verdade essencial que tem o duplo caráter de um mistério religioso e de uma doutrina de sabedoria. Pergunta-se: como não se encontraria esta ambiguidade na mensagem do primeiro filósofo? Também a sua mensagem concerne a uma realidade dissimulada por detrás das aparências e que escapa ao conhecimento vulgar. A forma do poema em que se exprime ainda uma doutrina tão abstrata, como a de Parmênides, traduz este valor de revelação religiosa que conserva a filosofia nascente7. Tal como o adivinho e o poeta, e ainda confundido com eles, o Sábio define-se originalmente como o ser excepcional que tem o poder de ver e de fazer ver o invisível. Quando o filósofo pretende definir o seu próprio procedimento, a natureza da sua atividade espiritual, o objeto da sua indagação, utiliza o vocabulário religioso das seitas e das confrarias: apresenta-se como um eleito, como um theios aner, que se beneficia de uma graça divina; realiza uma viagem mística no além, por um caminho de procura que invoca a Via dos mistérios no termo do qual obtém, por uma espécie de epopteia, esta visão que consagra o primeiro grau de iniciação8. Abandonando a multidão dos “insensatos”, entra no pequeno círculo dos iniciados: aqueles que viram, oi eidotes, que sabem, sophoi. Aos diversos graus de iniciação, nos mistérios, corresponde, na confraria pitagórica, a hierarquia dos membros segundo o seu grau de adiantamento9; como, em Heráclito, a hierarquia dos três tipos diferentes de humanidade: aqueles que ouvem o logos (que tiveram a epopteia), aqueles que a ouvem pela primeira vez, sem o compreender ainda (a myesis dos novos iniciados), aqueles que não a ouviram (os amyetoi)10.
E. Rohde, Psyché, Friburgo, 1894; trad. francesa por A. Reymond, Paris, 1952, pp. 336 sq. ↩
W.R. Halliday, Greek divination. A study of its methods and principles, Londres, 1913. ↩
Cornford, op. cit., pp. 89 sq. ↩
Ilíada, I, 70; cf. Cornford, pp. 73 e sq. ↩
É a mesma fórmula que Hesíodo emprega na Teogonia, 32: as Musas inspiravam-no para cantar as coisas que foram e que serão, — e, Teogonia, 38: as Musas dizem as coisas que são, que serão, que foram. Por outro lado, a adivinhação, em princípio, não concerne menos ao passado do que ao futuro. Um profeta purificador, como Epimênides, poderá mesmo restringir a sua competência divinatória exclusivamente à descoberta dos fatos passados, que permanecem desconhecidos (Aristóteles, Retórica, III, 17, 1418 A 24). ↩
Hesíodo, Teogonia, 43 sq. Cf. Cornford, op. cit., p. 77. ↩
Cf. L. Gernet, “Les origines de la philosophie”, loc. cit., p. 2. ↩
Sobre a relação entre o vocabulário, as imagens, os temas de pensamento, em um Parmênides e em uma tradição das seitas místicas, cf. L. Gernet, loc. cit., pp. 2-6; G. Thomson, op. cit., pp. 289 sq. ↩
Louis Gernet, loc. cit., p. 4. Gernet sublinha o valor religioso do termo beatus (eudaimon) que designa o mais alto grau da hierarquia e que se decompõe em doctus, perfectus e sapiens; cf também Cornford, op. cit., p. 110. ↩
Heráclito, fr. 1; cf. Cornford, op. cit., p. 113; G. Thomson, op. cit., p. 274. ↩