A solidariedade que constatamos entre o nascimento do filósofo e o aparecimento do cidadão não é para nos surpreender. Na verdade, a cidade realiza no plano das formas sociais, esta separação da natureza e da sociedade que pressupõe, no plano das formas mentais, o exercício de um pensamento racional. Com a Cidade, a ordem política destacou-se da organização cósmica; aparece como uma instituição humana que é objeto de uma indagação inquieta, de uma discussão apaixonada. Neste debate, que não é somente teórico, mas no qual se afronta a violência de grupos inimigos, a filosofia nascente intervém com plena competência. A “sabedoria” do filósofo designa-o para propor os necessários remédios à subversão que provocaram os começos de uma economia mercantil. Pede-se-lhe que defina o novo equilíbrio político suscetível de reencontrar a harmonia perdida, de restabelecer a unidade e a estabilidade sociais, pelo “acordo” entre elementos cuja oposição dilacera a Cidade. Às primeiras formas de legislação, aos primeiros ensaios de constituição política, a Grécia associa o nome dos seus Sábios. Aí ainda, vê-se o filósofo tomar a seu cargo as funções que pertenciam ao rei-sacerdote no tempo em que, confundidas a natureza e a sociedade, ele ordenava simultaneamente uma e outra. Mas, no pensamento político do filósofo, a transformação mental não se evidencia menos do que no seu pensamento cosmológico. Separadas, natureza e sociedade constituem igualmente objeto de uma reflexão mais positiva e mais abstrata. A ordem social, tornada humana, presta-se a uma elaboração racional do mesmo modo que a ordem natural tornada physis. Exprime-se, em um Sólon, no conceito do Metron, da justa medida, que a decisão do nomotheta deve impor às facções rivais fixando um “limite” à sua ambição excessiva; entre os pitagóricos, no conceito de homonoia, acordo numérico que deve realizar a harmonia dos contrários, a sua fusão em uma nova unidade1. A velha ideia de uma ordem social baseada em uma distribuição, em uma repartição (nomos) das honras e dos privilégios entre grupos estrangeiros que se opõem na comunidade política, como as forças elementares no cosmo, tornar-se-á, após o século VI a.C., a noção abstrata de isonomia, igualdade perante a lei entre os indivíduos que se definem todos de modo análogo na qualidade de cidadãos de uma mesma Cidade2.
Como a filosofia se desenvolve do mito, como o filósofo deriva do mago, assim também a Cidade se constitui a partir da antiga organização social: ela a destrói, mas ao mesmo tempo conserva o quadro; transpõe a organização tribal em uma forma que implica um pensamento mais positivo e abstrato. Pensemos, por exemplo, na reforma de Clístenes3: em substituição das quatro tribos jônias da Ática, que sabemos por Aristóteles corresponderem às quatro estações do ano, ela cria uma estrutura artificial permitindo resolver problemas propriamente políticos. A população da Ática foi repartida em dez tribos, cada uma agrupando três trinas, as quais agrupam vários demos. Trítias e demos são estabelecidos sobre uma base puramente geográfica; reúnem os habitantes de um mesmo território, não de parentes do mesmo sangue, como, em princípio, os gene e as frátrias, que permanecem intactos, mas à margem do quadro tribal, sobre um outro plano diverso do da Cidade. As três trítias que formam cada tribo recrutam-se, a primeira na região costeira, a segunda no interior das terras, a terceira na zona urbana. Por este amálgama deliberado, a tribo realiza a unificação política, a mistura, como diz Aristóteles4, de populações e de atividades diversas que compõem a Cidade. A este artifício na organização administrativa corresponde uma divisão artificial do tempo civil. O calendário lunar continua a regular a vida religiosa. Mas o ano administrativo está dividido em dez períodos de trinta e seis ou trinta e sete dias, correspondendo às dez tribos. O Conselho dos Quatrocentos é aumentado para quinhentos membros, cinquenta por tribo, de modo que alternadamente, no curso dos períodos do ano, cada tribo forma a comissão permanente do conselho.
Pela sua coerência e pela nitidez do seu delineamento, as reformas de Clístenes acusam os traços característicos do novo tipo de pensamento que se exprime na estrutura política da cidade. Em outro plano, são comparáveis aqueles que, com o aparecimento da filosofia, nos pareceram definir a transformação do mito em razão. A promulgação de um calendário civil corresponde às exigências da administração humana e inteiramente distinto do tempo lunar, o abandono da correspondência entre o número das tribos no grupo social e o das estações do kosmos, são um certo número de fatos que supõem e que reforçam a um tempo a separação da sociedade e da natureza. Um novo espírito positivo inspira reformas que procuram atingir objetivos políticos precisos mais do que pôr a Cidade em harmonia com a ordem sagrada do universo. O esforço de abstração assinala-se em todos os planos: na divisão administrativa baseada em setores territoriais delimitados e definidos, e não já em laços de consanguinidade; no sistema dos números arbitrariamente escolhidos para repartir de modo equitativo graças a uma correspondência matemática, as responsabilidades sociais, os grupos de homens, os períodos de tempo; na própria definição da Cidade e do cidadão: a Cidade não se identifica mais com uma personagem privilegiada; não é solidária de qualquer atividade, de qualquer família particular; é a forma que toma o grupo unido de todos os cidadãos considerados independentemente da sua pessoa, da sua ascendência, da sua profissão. A ordem da Cidade é a ordem na qual a relação social, pensada abstrata e independentemente dos laços pessoais ou familiares, se define em termos de igualdade, de identidade.
Cf. G. Thomson, op. cit., pp. 228 sq. ↩
Cf. L. Gernet, Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce, Paris, 1917, pp. 6 e 26, com referência a Rudolph Hirzel, Themis, Dike, und Werwandtes. E. Laroche mostrou (Histoire de la racine NEM en grec ancien, 1949) que nomos teve primeiramente um sentido religioso e moral bastante vizinho de cosmos: ordem, arranjo, justa repartição. Após os Pisistrátidas, tomará, em Atenas, o sentido de lei política, em substituição de thesmos, graças à sua associação com o ideal democrático da isonomia. A lei (nomos), quer ela se apoie sobre uma igualdade absoluta ou proporcional, conserva um caráter distributivo. Um outro sentido de nomos, enfraquecido em relação ao sentido primeiro de regra, é o que se encontra, por exemplo, em Heródoto, de costume, uso, sem valor normativo. Entre o sentido de lei política e de costume, pode produzir-se um desvio de que o pensamento filosófico, especialmente com os sofistas, tirará partido. ↩
Cf. G. Thomson, op. cit., pp. 224 sq. ↩
Constituição de Atenas, XXI, 3. ↩