====== Filebo 34c-36c — Desejo ====== Sócrates – A razão de eu haver exposto tudo isso é a seguinte. Protarco – Qual será? Sócrates – Para determinar a maneira mais clara e perfeita que for possível o que seja o prazer da alma sem o corpo e, ao mesmo tempo, o desejo. Penso que minha exposição esclareceu os dois conceitos. XX – Protarco – Então, Sócrates, tratemos do que vem a seguir. Sócrates – Ao que parece, precisaremos falar muito a respeito da origem e de todas as formas do prazer. Logo de saída, teremos de considerar o que é desejo e como se origina. Protarco – Então, consideremo-lo; nada perderemos com isso. Sócrates – Não, Protarco; quando encontrarmos o que ora procuramos, perdemos a perplexidade que nos ficou dessa questão. Protarco – Ótima observação; mas tentemos estudar o que se segue. Sócrates – Não afirmamos agora mesmo que a fome, a sede é tudo o mais da mesma natureza se inclui na classe dos apetites? Protarco – Afirmamos. Sócrates – E que vemos de idêntico em todos, para designarmos com um nome, apenas, tantas coisas diferentes? Protarco – Por Zeus, Sócrates, eis uma pergunta difícil de responder; mas será preciso dizer alguma coisa. Sócrates – Retomemos a questão do seguinte ponto. Protarco – De onde será? Sócrates – Sempre que dizemos que alguém está com sede, não queremos significar com isso alguma coisa? Protarco – Como não? Sócrates – Equivale a dizer que essa pessoa se acha vazia. Protarco – Sem dúvida. Sócrates – E sede, não é desejo? Protarco – Sim, desejo de beber. Sócrates – Beber ou encher-se de líquido? Protarco – Acho que encher-se de líquido. Sócrates – Então, ao que parece, quando algum de nós está vazio, deseja precisamente o contrário daquilo que experimente: por estar vazio, quer ficar cheio. Protarco – Certíssimo. Sócrates – E agora, quem estivar vazio pela primeira vez, poderá alcançar por meio da sensação ou da reminiscência uma repleção que no momento presente ele não sente nem nunca experimentou no passado. Protarco – Como o poderia? Sócrates – Mas, quem deseja, deseja sempre alguma coisa, e o que afirmamos. Protarco – Como não? Sócrates – Logo, essa pessoa não deseja o que experimenta; visto estar com sede, acha-se vazio; e o vazio só deseja encher-se. Protarco – Como não? Sócrates – Sendo assim, deve haver no sedento alguma coisa que, de algum jeito, aprende a repleção. Protarco – Necessariamente. Sócrates – O corpo, não pode ser; porque esse está vazio. Protarco – Certo. Sócrates – Resta ser a alma o que aprende a repleção, pela memória, evidentemente; mas, por qual via a teria encontrado? Protarco – Não sei qual possa ser. XXI – Sócrates – Será que percebemos direito a consequência de nosso raciocínio? Protarco – Qual? Sócrates – Afirma nosso argumento que não há sede do corpo. Protarco – Como assim? Sócrates – Por admitir que o esforço de todo animal tende sempre para o contrário daquilo que o corpo experimenta. Protarco – Exato. Sócrates – E o impulso que o leva para o oposto do que ele experimente demostra que ele possui a memória contrário daquela condição. Protarco – Perfeitamente. Sócrates – Assim, demonstrando nosso argumento que é a memória que nos leva para os objetos de nossos desejos, demonstra, no mesmo passo, que todos os impulsos e desejos e o comando de todos os seres animados pertencem à alma. Protarco – Certíssimo. Sócrates – Que o corpo tenha sede ou fome ou passe por qualquer dessas necessidades, e o que o nosso argumento não admite de jeito nenhum. Protarco – É muito certo. Sócrates – Nas mesmas conexões, observemos o seguinte: Quer parecer-me que argumento pretende revelar-nos nessas afecções um modo particular de vida. Protarco – Em que afecções, e a que modo de vida te referes? Sócrates – Na repleção e no esvaziamento e em tudo o mais que se relacionar com a conservação ou a destruição dos seres vivos, e nos casos em que um de nós, por encontrar-se num desses estados, ora sofre ora goza, conforme passe de um para o outro. Protarco – Exato. Sócrates – E que acontece quando alguém se encontra no meio dos dois? Protarco – No meio, como? Sócrates - Ao sofrer com determinado estado, recorda-se do prazer, cuja realização faria cessar aquela dor, mas sem, com isso, atingir a repleção. Que acontecerá? Diremos ou não diremos que essa pessoa se encontra entre esses dois estado? Protarco – Diremos, sem dúvida alguma. Sócrates – E estará inteiramente mergulhado na dor ou no prazer? Protarco – Não, por Zeus. De algum modo, sofre duplamente: no corpo, pelas condições em que se encontra; na alma, pela expectativa de algum desejo. Sócrates – Que entendes, Protarco, por sofrimento duplo? Não poderá acontecer que um de nós, por estar vazio, se mantenha na esperança de vir a enche-se, e outros vezes o contrário disso, deixe-se invadir pelo desespero? Protarco – Pode muito bem acontecer isso mesmo. Sócrates – E não te parece que, na esperança de vir a encher-se, ele se alegra só com essa lembrança, ao mesmo tempo que sofre, pelo fato de estar vazio? Protarco – Necessariamente. Sócrates – Nessas condições, tanto os homens como os animais sentem simultaneamente prazer e dor. Protarco – É possível. Sócrates – E no caso de estar vazio, sem a menor esperança de chegar à repleção? Não será então, e só então, que se produz esse duplo sentimento de dor que há momentos observaste e te levou a concluir que o mesmo se passa em todos os casos? Protarco – Muitíssimo certo, Sócrates.