====== Enéada III, 6 - Sobre a impassibilidade dos incorporais ====== Tal como os tratados 22 e 23, o tratado 26 poderia ter um título paradoxal: como é que aquilo que parece sofrer não sofre. Para Plotino, trata-se de retificar dois erros baseados nos nossos “hábitos de linguagem” (cap. 12, 29): o erro que nos leva a falar das “paixões da alma” e o erro, mais diretamente associado à escola peripatética, que supõe que a matéria é sempre “informada”, “afetada” pelas formas nela presentes. Mas, segundo Plotino, nem a alma nem a matéria sofrem. O seu modo de ser, que é bastante diferente, como sabemos pelo Tratado 12 (II, 4), que definiu o que é a matéria, implica que sejam inalteráveis e sempre idênticos a si mesmos. A impassibilidade do ser e das Formas, mencionada brevemente no Tratado 23 (VI, 5), 3, 6-8, era, por assim dizer, evidente, uma vez que o ser não é outra coisa senão ele mesmo, é pura identidade consigo mesmo na plenitude realizada e imutável do mundo inteligível. A questão é muito mais difícil quando se trata da alma, que, por seu lado, parece “estar noutra coisa”, num corpo, e estar associada ao devir, como nos mostra a história das nossas vidas. Não concordam os estoicos e os epicuristas que a vida começa com os dois afetos fundamentais do prazer e da dor? Da mesma forma, a matéria parece ser eminentemente sujeita a alterações, pois “recebe formas”. Como poderia ter um predicado associado à dignidade do ser perfeito, a impassibilidade? ===== Plano detalhado do tratado. ===== ==== Primeira Parte: A impassibilidade da alma (1-5) ==== **Capítulo 1: Primeiras questões sobre a passividade da alma.** 1-2. As sensações não são afetos, mas atividades. 3-6. Os afetos pressupõem o corpo, os juízos a alma. 6-14. O juízo é uma espécie de impressão? A alma pode ser alterada? 15-18. Anúncio da questão: o que é a “parte passiva da alma”? 18-25. O vício e as “paixões da alma” alteram a alma? 25-37. Sim, se a alma é um corpo; não, se a alma é uma realidade sem grandeza. Se a alma for uma razão ou um número, dir-se-á que é passiva por analogia com o mundo dos corpos. **Capítulo 2: O vício é uma alteração da alma?** 1-5. Posição do problema: o vício e a virtude estão “na” alma? 5-18. A virtude não é harmonia? Comparação da alma com um coro de bailarinos. 18-29. Cada parte deve ter a sua própria virtude; o vício parece ser uma alteração das partes da alma. 29-41. A virtude é a atualização de cada parte da alma em conformidade com o ato do Intelecto. Rejeição do modelo da cera e do selo. 42-49. Lembrete sobre a memória. 49-54. Posição do princípio “os seres sem matéria são impassíveis”. 54-67. Retomada do exame dos vícios: “covardia” e “intemperança”. 67-68. Conclusão: no vício e na virtude, não há acréscimos que façam sofrer ou alterar a alma. **Capítulo 3: Discussão sobre as paixões: que papel desempenha o corpo? Da alma?** 1-3. Posição da pergunta “O que é uma paixão da alma? 3-11. O que é alterado é o composto que é o corpo vivo. 11-22. Exame de três paixões particulares: a vergonha, o prazer e o desejo. 22-26. Esclarecimento da relação entre a alma, a vida e o movimento. 27-35. Resumo dos três primeiros capítulos: a realidade da alma é inalterável. **Capítulo 4: O que é a potência passiva (pathetikon)?** 1-6. Anúncio da questão. 6-17. Nem todas as paixões provêm da opinião, mas são acompanhadas pela opinião. 17-30. Análise do medo e das suas manifestações físicas. 31-41. Introdução da noção de Forma (eidos): a potência vegetativa em que se enraíza o desejo é uma forma impassível. 41-52. Comparação entre a relação da alma com o corpo e a da harmonia com as cordas de um instrumento musical. **Capítulo 5: Impassibilidade e purificação.** 1-2. Posição da questão: se a alma é intrinsecamente impassível, porque é que a filosofia propõe a purificação? 2-9. São as “imagens mentais” que devem ser erradicadas para assegurar a saúde da alma. 10-11. Comparação com as imagens do sonho. 12-15. Como falar de “impureza” e de “separação da alma do corpo”? 15-20. Trata-se de purificar a alma das opiniões e de a virar para cima. 20-23. Para pensar a separação, compará-la a uma luz no meio do nevoeiro. 23-29. Separação significa também purificar o modo de vida da alma; aparece a noção de “veículo da alma”. ==== Segunda Parte: A impassibilidade da matéria (6-15) ==== **Capítulo 6: Refutação da tese estoica de que o ser é corpóreo.** 1-7. Anúncio dos capítulos seguintes: em que sentido a matéria é impassível? 7-11. É preciso refutar o senso comum (e os estoicos) que se enganam sobre a natureza do ser. 11-14. O ser real é a totalidade em que nada falta; é a causa do que aparece. 14-23. O ser vive e pensa; qualquer acréscimo a ele seria o acréscimo do não-ser. 23-32. A vida e o intelecto não podem ser incluídos no que é inferior ao ser. O ser não é, portanto, um corpo. 33-41. Objeção de um ouvinte “materialista”: como podemos pensar que a terra e as montanhas não são? Como são a alma e o intelecto, que não têm a propriedade da “resistência”? 41-65. Resposta de Plotino : 41-49. O que é pesado não pode subir; a queda dos corpos é um sinal de fraqueza. 49-53. O movimento é uma certa forma de vida. 53-61. A possibilidade de ser afetado depende do grau de corporeidade: a terra é mais “passiva” do que os outros elementos porque não pode reunir-se depois de cortada. 61-64. A queda, o peso, os choques fazem parte de uma lógica de fraqueza e, em última análise, de não-ser. 65-77. Conclusão e parênese: o verdadeiro despertar é sair do corpo. Os “materialistas” são como sonhadores presos nos seus sonhos. A realidade do corpo é apenas fluxo e corrupção. **Capítulo 7: A matéria não é um corpo, mas “verdadeiramente não-ser”.** 1-3. Retomada da questão. Em que sentido a matéria é o substrato dos corpos, se ela é não-ser? 3-7. A matéria e o ser são diferentes dos corpos. 7-20. A matéria é verdadeiramente não-ser; não tem vida, nem razão, nem forma. É só aparência. 20-28. Compara-o a um espelho: tudo o que está “nele” não está realmente lá. 28-36. Os reflexos na matéria dependem do ser. 36-43. As imagens não atuam sobre a matéria, esta é totalmente impassível. **Capítulo 8: Em diálogo com Aristóteles: uma realidade só sofre com o seu contrário.** 1-3. Retomando o princípio aristotélico, o afeto pressupõe a contrariedade dentro de um género. 3-9. Exemplos de quente e frio, seco e húmido. Caso mais específico do fogo. 9-12. A alteração leva à destruição. A matéria indestrutível é também inalterável. 12-20. As qualidades sensíveis afetam-se mutuamente. A questão da presença de qualidades “na” matéria continua por esclarecer. **Capítulo 9: Continuação da discussão com o tratado de Aristóteles Sobre a Geração e a Corrupção.** 1-2. Anúncio da questão: “estar presente em” e “estar em” são expressões polissêmicas. 3-6. Distinção entre transformação com e sem paixão. 7-13. Exemplos da impassibilidade da cera, da luz, de uma pedra e de uma superfície colorida. 14. Objeção: o substrato corporal é afetado? 15-24. A matéria é impassível; comparação com espelhos. 25-35. A alteração acompanhada de paixão pressupõe uma relação de contrariedade dentro de um género. 35-41. A matéria é isolada, separada, impassível; comparação de qualidades antagónicas e de lutadores numa casa. 41-44. Resumo: A matéria é mais impassível do que as qualidades heterogéneas. **Capítulo 10: A matéria não é alterada.** 1-3. A paixão implica alteração. 4-13. Ao ser qualificada, a matéria deixará de ser um receptáculo indeterminado de qualidades; perderá a sua identidade. 14-19. Mais geralmente, tudo o que é alterado é alterado segundo predicados não essenciais. 19-28. Refutação da hipótese absurda de que a matéria não se altera enquanto matéria. Toda a realidade da matéria é o facto de ela ser matéria. Não pode ser alterada. **Capítulo 11: Em que sentido é que a matéria, que é má, participa no bem?** 1-5. Citação do Timeu 50c, Platão convida-nos a meditar sobre a presença das Formas na matéria. 5-18. As imitações das Formas na matéria afetam-se umas às outras sem afetar a matéria. A questão não é tanto se as Formas entram na matéria, mas se estão presentes. 18-29. Análise do caso da fealdade que é embelezada. A matéria não pode receber a beleza. Conclusão provisória: não participa no bem. 29-44. É necessário estabelecer-lhe um modo original de participação, que não afecte de modo algum o seu estatuto (ser não-ser). 45. Conclusão: o bem não afecta a matéria, que é totalmente impassível. **Capítulo 12: Continuação da reflexão sobre a “participação impassível”; advertência contra os nossos hábitos de linguagem.** 1-8. Platão propõe um modelo de participação impassível para a matéria. 9-16. Anúncio da necessidade da matéria na existência inconsistente dos corpos. 16-21. Possível objeção à equivocidade do termo “alteração”. 22-27. Citação de Demócrito. A presença de qualidades na matéria não é uma presença total e real. 28-43. Comentário a expressões do Timeu que sugerem a existência de um pâtir para a matéria. 43-51. Troca de objeções e respostas sobre o sensível. 51-57. Dizer que a matéria sofre é pensar nela como um corpo com extensão. **Capítulo 13: Em que sentido é que a matéria “foge da forma”; comparação da matéria com um espelho.** 1-11. Como podemos dizer que a matéria “foge da forma”? A sua forma é que nunca a tem. A permanência da matéria opõe-se ao devir sensível. 11-29. Comenta a expressão do Timeu “é o receptáculo e a ama de todo o devir” (49a5-6). Como tal, a matéria evita radicalmente a relação com o ser. 29-34. A matéria permanece impassível em relação ao que entra nela; não tem parte na verdade. 34-55. Uma comparação pormenorizada da matéria com um espelho. O espelho é sensível, a matéria é invisível. Os seres da matéria devem necessariamente depender das Formas. **Capítulo 14: A existência da matéria; interpretação alegórica do mito de Poros e Penia.** 1-7. Necessidade da existência da matéria para que se constituam os reflexos das Formas. 7-18. Comparação entre a matéria em Penia e os reflexos das Formas em Poros. 18-21. Distinção de três graus de realidade: o ser, o que está fora do ser e o não-ser absoluto. 21-26. A matéria participa sem participar. Comparação com o eco. 26-28. Se a matéria participasse nas Formas, o mundo desmoronar-se-ia. 28-34. A matéria detém o movimento processional, tal como um espelho pode concentrar os raios solares. 34-36. Conclusão: a matéria é efetivamente a causa da geração. **Capítulo 15: As formas estão na matéria como as representações estão na alma.** 1-5. Continuação da comparação com os objectos que captam a luz do Sol. 5-11. A matéria é estranha a todos os limites, sem relação com nada. 11-23. Comparação com as atividades da alma. A atividade de representação (phantasia) não esconde a natureza da alma. 23-32. A fraqueza da matéria, que não pode aparecer ou dizer “estou aqui”. ==== Terceira Parte: A matéria e a grandeza (16-18) ==== **Capítulo 16: Matéria e dimensão: o problema do tamanho.** 1-5. A razão formal atribui uma dimensão à matéria, que é em si mesma inextensível. 5-8. A matéria não retém nada da dimensão dos corpos que nela entram. 8-15. Resposta a uma objeção: a matéria não pode transformar-se em nada. 15-20. A matéria tem a dimensão do Universo sem que isso a afecte. 21-24. A diferença entre os seres que sofrem e os que não sofrem. 24-32. A matéria participa da grandeza, como das outras qualidades, sem participar delas. **Capítulo 17: Continuação do exame da grandeza material.** 1-10. A dimensão em si mesma é animada pelo desejo de ser ela mesma, isto é, grande. O sensível e o material também desejam ser grandes. 10-12. A grandeza material é uma mentira. 12-16. Cada realidade sensível tem um tamanho específico. Por isso, toda a matéria se torna grande. 16-21. O poder da forma determina a matéria. 21-37. As qualidades sensíveis são ilusões, homónimas dos inteligíveis. A matéria é e não é grande. **Capítulo 18: Continuação e fim do exame da grandeza material.** 1-9. Hipótese absurda de que a grandeza é produzida por um ato de pensamento; o grande já não dependeria da Forma do grande. 9-13. A matéria só pode parecer grande. 13-23. O tamanho é apenas uma peça de vestuário que cobre a matéria. 24-29. Comparação com a impassibilidade da alma. 29-31. A matéria não tem atividade, é apenas uma sombra. 31-46. Os motivos formativos precisam da matéria como lugar para se desenvolverem em seres vivos. ==== Conclusão geral. ==== 1-8. Recordação das qualidades contrárias que se afetam mutuamente. 8-14. Recordação dos primeiros capítulos sobre as alterações corporais a que correspondem as atividades da alma. 14-19. A matéria impassível nada produz; ela é mais um “receptáculo” do que uma “mãe”. 19-25. Como entender a comparação entre a matéria e uma mãe. 25-30. Alusão ao Hermes itifálico e à Grande Mãe rodeada de eunucos. 30-41. A matéria não gera nada. (BPPT)