Um filósofo racionalista como Brunschvicg vê na utilização do mito em Platão um «regresso ofensivo» de uma forma de pensamento primitivo do tipo daquela que se encontra em Hesíodo e que se reduz à interrogação: o que era antes do mundo ser? Para Brunschvicg haveria em Platão uma ideia fecunda, e chamada aos mais altos destinos da nossa civilização ocidental, a de uma explicação possível do mundo pela matemática, ideia que teria tido o seu germe em Pitágoras. Essa ideia teria sido mantida em repouso até Galileu e Descartes, em razão de constantes apelos à mitologia e a todas essas superstições do número que davam origem a uma aritmologia que está para a aritmética como a astrologia está para a astronomia.
Qualquer filósofo faz história da filosofia tanto, senão mais, como filósofo do que como historiador; por isso esta não pode ser assimilada a uma filiação de doutrinas de que ele poderia ser o cronista objetivo. Não é portanto estranho pensar que esse «regresso ofensivo do mito», que surge a Brunschvicg como o pecado do platonismo, possa ser considerado, numa outra perspetiva, como uma parte essencial e não desprezível da filosofia de Platão.
Kierkegaard quis mostrar que havia em Platão uma união do dialético e do mítico da qual ambos sairiam enaltecidos: «O mítico», diz ele, «pode ter algo de tradicional; o tradicional parece a cantiga de embalar que nos leva ao sonho. Mas torna-se mítico quando o espírito chega e ninguém sabe de onde ele vem nem para onde vai»; de modo que Kierkegaard define assim a mitologia: «A mitologia consiste em manter a ideia de eternidade na categoria do tempo e do espaço.»1) Assim, o mito, longe de ter de ser rejeitado da filosofia de Platão como estranho à essência do seu sistema, tese defendida por L. Couturat2), seria na verdade «parte integrante» da doutrina como diz V. Brochard3). Esta posição tem o mérito de tomar a filosofia de Platão como um todo no interior do qual não há que escolher, mas que devemos apreender de dentro, e é ela que iremos seguir.
Como diz muito bem P.-M. Schuhl, Platão «coloca o entusiasmo muito alto, quer se manifeste sob a forma do delírio de amor, do delírio religioso ou do delírio poético. Sob estes três aspectos, reconhece o impulso insatisfeito que levanta o indivíduo, o empurra para algo que o ultrapassa… Para exprimir esse além recorde aos mitos, de que a sua imaginação é pródiga, narrativas ilustradas que explicam o mundo do devir por hipóteses verossímeis, e transpõem na duração variável as verdades intemporais ao tentar respeitar as proporções que formam a armadura do modelo inteligível, prolongando o raciocínio com uma chamada para o sonho; obras de arte cuja carga afetiva e dinamismo encantatório querem colocar no caminho da verdade e da salvação; jogo sério de que Platão é o primeiro a sentir a insuficiência e a inadequação, pois, melhor que ninguém, sabe que verdades há que as imagens não podem exprimir; daí uma ironia muito particular, espécie de humor metafísico, que alterna com os exemplos que dá da ironia socrática; indica esta ironia que ele não se deixa levar pela linguagem que fala e que deve falar, para pelo menos tentar sugerir o inexprimível»4).
O Timeu disse-nos que o tempo era apenas a «imagem móbil da eternidade», diremos que o mito é o meio pelo qual o intemporal se torna uma narrativa na boca dos homens, é o modo que tem o Uno de vir colocar-se nos quadros do discurso, é o modo que é dado ao homem de tornar o invisível inteligível; senão perfeitamente visível, pelo menos perceptível. Graças ao mito, o indizível conta-se e a incomunicabilidade comunica-se, graças a ele a distância que nos separa desse além, desse epekeina no qual reside o Bem, é em parte eliminada; é por isso que justamente, parece, P. Frutiger assimila o mito a essa mudança de navegação para a qual nos convida Platão no Fédon5); o mito é uma via anagógica que tenta suscitar em nós uma anamnese capaz de nos reconduzir «além», onde está uma origem que perdemos. O mito é uma anábase para o logos6).