Nesta segunda versão do mito, reconhece-se a estrutura de pensamento que serve de modelo a toda a física jônia. Cornford dá esquematicamente a seguinte análise: 1.°) no começo, há um estado de indistinção onde nada aparece; 2.°) desta unidade primordial emergem, por segregação, pares de opostos, quente e frio, seco e úmido, que vão diferenciar no espaço quatro províncias: o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido; 3.°) os opostos unem-se e interferem, cada um triunfando por sua vez sobre os outros, segundo um ciclo indefinidamente renovado, nos fenômenos meteóricos, na sucessão das estações, no nascimento e na morte de tudo o que vive, plantas, animais e homens1).
As noções fundamentais em que se apoia esta construção dos jônios: segregação a partir da unidade primordial, luta e união incessante dos opostos, mudança cíclica eterna, revelam o fundo do pensamento mítico onde enraíza a sua cosmologia2). Os filósofos não precisaram inventar um sistema de explicação do mundo: acharam-no já pronto. A obra de Cornford marca uma viragem na maneira de abordar o problema das origens da filosofia e do pensamento racional. Visto combater a teoria do milagre grego que apresentava a física jônia como a revelação brusca e incondicionada da Razão, Cornford tinha por preocupação essencial restabelecer entre a reflexão filosófica e o pensamento religioso que a tinha precedido, o fio da continuidade histórica; por isso foi levado a procurar entre uma e outra os aspectos de permanência e a insistir sobre o que aí se pode reconhecer de comum. De tal sorte que, através da sua demonstração, se tem por vezes o sentido de que os filósofos se contentam com repetir, em uma linguagem diferente, o que já dizia o mito. Hoje que a filiação, graças a Cornford, está reconhecida, o problema toma necessariamente uma nova forma. Já não se trata apenas de encontrar na filosofia o antigo, mas de destacar o verdadeiramente novo: aquilo que faz precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para se tornar filosofia. Deve-se, por conseguinte, definir a mutação mental de que a primeira filosofia grega dá testemunho, precisar a sua natureza, a sua amplitude, os seus limites, as suas condições históricas.
Este aspecto do problema não passou despercebido a Cornford. Pode-se pensar que ele lhe teria conferido maior relevo se tivesse podido levar a bom termo a sua última obra. “Na filosofia, disse ele, a mito é “racionalizado”3). Mas que significa isto? Em primeiro lugar, que ele tomou a forma de um problema explicitamente formulado. O mito era uma narrativa, não a solução de um problema. Contava a série das ações ordenadoras do rei ou do deus tal como o rito as mimava. O problema achava-se resolvido sem na verdade ter sido posto. Mas, na Grécia, onde, com a Cidade (polis) triunfam novas formas políticas, só subsistem do antigo rito real vestígios cujo sentido se perdeu4); apagou-se a recordação do rei criador da ordem e fazedor do tempo5); não se vislumbra mais a relação entre o feito mítico do soberano, simbolizado pela sua vitória sobre o dragão, e a organização dos fenômenos cósmicos. A ordem natural e os fatos atmosféricos (chuvas, ventos, tempestades, raios), ao tornarem-se independentes da função real deixam de ser inteligíveis na linguagem do mito em que até então se exprimiam. Apresentam-se doravante como “problemas” sobre os quais a discussão está aberta. São estes problemas (gênese da ordem cósmica e explicação dos meteoro) que constituem, na sua forma nova, o problema, a matéria da primeira reflexão filosófica. O filósofo toma assim a sucessão do velho rei-mágico, senhor do tempo: elabora a teoria do que outrora o rei realizava6).