processão

“Há, portanto, como que uma grande vida estendida longitudinalmente, sendo cada uma de suas partes diferente da seguinte, mas o todo contínuo por si mesmo.” (V. 2 (11) 2. 26-28)

Vida e atividade: isso é a realidade para Plotino. Mais especificamente: instanciações de perfeição e de intensidade de vida e atividade. Exatamente: instanciações de perfeição e de intensidade da vida-atividade-intelecção. Para Plotino, todo ente é uma vida que se constitui em sua atividade essencial, e toda vida é uma forma de intelecção (nóesis); mas uma intelecção é mais obscura que a outra, como também a vida (III. 8 (30) 8.17-18): assim, há uma intelecção de primeiro grau, uma de segundo, uma de terceiro e outra de quarto grau, que correspondem respectivamente aos graus de vida. A vida mais perfeita é a do intelecto, que é intelecção imediata, perfeita, em que sujeito e objeto de intelecção são idênticos; após ela, seguem-se os três níveis de vida da alma – o racional, o sensitivo e o vegetativo – aos quais correspondem intelecções gradativamente menos perfeitas e mais obscuras: racionalidade discursiva (diánoia), sensibilidade (aísthesis) e vegetatividade (phytikón) (v. sensações). Em suma, qualquer vida é uma atividade, por mais ínfima que seja, e toda vida-atividade é intelecção, de modo que, como é a atividade que constitui a essência de um ente (como logo veremos), pode-se dizer que diferença ontológica na realidade plotiniana é uma diferença de intensidade e perfeição de vida-atividade-intelecção – ou, empregando terminologia mais plotiniana, existem apenas graus de perfeição contemplativa (Essa é a lição subversiva e originalíssima do tratado Sobre a natureza, a contemplação e o uno (III. 8 (30)).). Por isso, Plotino poderá dizer que até as plantas são dotadas de intelecção (III. 8. (30) 1. Nesta passagem, Plotino não fala de intelecção, mas de contemplação (theoría); contudo, nesse caso, os termos são equivalentes.). Estamos habituados a entender a vegetatividade como crescimento e nutrição inconscientes e involuntários, mas Plotino, não: para ele, é intelecção, esvaída e obscura, mas ainda assim intelecção. Façamos uma especificação genérica momentânea: os pólos da realidade – o uno e a matéria – estão, respectivamente, além e aquém da vida, da intelecção e da atividade. O real, pois, é o que está abaixo do uno – que é mais do que real – e acima da matéria – que é menos do que real.

Embora Plotino não tenha formulado uma descrição da realidade de modo sistemático como um Proclo ou um Damáscio, podemos perceber em sua reflexão cinco princípios que regem a processão da realidade a partir do uno 1). Tradução, introdução e notas, Editora da Unicamp, no prelo), chamava tais princípios de axiomas, apresentado-os conforme exigia a passagem comentada. Valho-me, agora, da organização de Igal (1992, voL I, pp. 28-32) para apresentar esses princípios de modo sistematizado.)). Antes de tratar das instanciações desse fluxo vital, conheçamos esses princípios:

a) O princípio da dupla atividade: como mencionamos acima, a essência de um ente é constituída por sua atividade; cabe, agora, acrescentar que, em cada nível da realidade, há dois tipos de atividade: a atividade da essência de cada ente (enérgeia tês ousías), constitutiva da essência de cada coisa e intrínseca a ela, e a atividade resultante da essência de cada coisa (enérgeia ek tês ousías), derivada da primeira mas dela distinta (V. 4 (7) 2.27-30). A imagem usada por Plotino é a do fogo: um é o calor imanente ao fogo, outro o liberado por ele (V. 1 (10) 3.10; V. 4 (7) 2.30-33). Esse princípio é de validade universal (IV. 3 (27) 10.32-35; IV. 5 (29) 7.13-20), mas de aplicação analógica (Igal, 1992, vol. I, p. 29): por ser de validade universal, pode ser empregado para explicar a processão como transmissão em cadeia do fluxo vital, uma vez que cada instanciação, ao mesmo tempo em que é constituída essencialmente por uma atividade, libera e transmite uma nova atividade; sendo de aplicação analógica, pode ser aplicado ao primeiro princípio 2), embora ele esteja além da essência e não seja possível falar propriamente de uma atividade constitutiva de sua essência: como especificará Plotino, ele é uma atividade sem essência (VI. 8 (39) 20.9-10).

b) O princípio da produtividade do perfeito: a atividade resultante da essência é consequência necessária da atividade da essência porque todos os entes, quando atingem sua perfeição, engendram (V. 1 (10) 6.38). Todos os seres vivos, observa Plotino, ao alcançarem a maturidade, engendram um novo ser semelhante a si; mesmo coisas inanimadas como o fogo ou a neve irradiam a atividade de sua essência: essa atividade irradiada é semelhante àquela que é constitutiva da essência e possui efeito assemelhador, permitindo que a essência se perpetue – o calor do fogo aquece seu entorno, assemelhando-o ao fogo. Ora, se constatamos que esse fato é verdadeiro no âmbito sensível, devemos induzir que é ainda mais no âmbito inteligível, sendo sumamente perfeito no primeiro princípio, imitado por todas as coisas. (V. 1 (10). 6. 30-39; V. 4 (7) 1. 23-36) A imagem plotiniana para esse princípio é o transbordamento: o intelecto é o transbordamento da superabundância do uno, assim como a alma é o derramamento da atividade perfeita do intelecto (V. 2 (10) 1.7-16).

c) O princípio da doação sem perda: como a atividade resultante da essência é consequência necessária da atividade da essência, não há diminuição dessa essência; isto é, a essência se constitui em uma atividade, dessa atividade resulta uma outra, que é o transbordamento da atividade pela qual a essência é o que é: o calor liberado pelo fogo é resultado de sua atividade intrínseca e nenhuma diminuição ou enfraquecimento de sua essência ocorre por causa dessa atividade. É importante enfatizar que não há, nessa doação, transmissão material. É segundo esse princípio que Plotino não cessa de comparar o uno a uma fonte inesgotável que alimenta todos rios sem consumir-se neles ou, ainda, à raiz que mantém viva e nutrida uma gigantesca árvore (IIl. 8 (30) 10.3-14; a imagem da fonte aparece, por exemplo, em I. 6 (1) 9.41; VI. 9. (9) 5.36,9.1-2, 11. 31; VI. 7 (38) 12. 23-26; 23. 21; VI. 8 (39) 14. 30-31; a da raiz, em VI. 9 (9) 9. 2; VI. 8 (39) 15. 33-36; ffl. 3 (48) 7.10-13). “Permanecer” (ménein) é o verbo empregado constantemente por Plotino para exprimir o princípio de doação sem perda.

d) O princípio da degradação progressiva: o produto é do mesmo gênero do produtor, porém sempre inferior, ocupando um nível metafisicamente inferior da escala hierárquica. O anterior é diferente do posterior, porque sua perfeição ontológica é maior; se sua perfeição ontológica é maior, então ele realiza a atividade que lhe concerne mais intensamente: a realidade plotiniana é hierárquica justamente porque a perfeição ontológica de um ente depende da perfeição da atividade de seu produtor (III. 8 (30) 5.17-25; V. 5 (32) 13.37-38). A processão, pois, é um descenso contínuo (I.8 (51) 7.17-20; V. 3 (49) 16. 5-8), que se inicia na perfeição, no uno, e termina na fronteira da nulidade, a matéria. Entretanto, convém ressaltar a continuidade da processão: o produto é imediatamente inferior ao produtor, não havendo lacunas ou intermediários entre eles (V. 1 (10) 6.39 e 49; V. 4 (7) 1.40-41).

e) O princípio da gênese bifásica: o produto resultante da atividade de uma essência não é instantaneamente uma nova essência; seu estágio inicial é indefinido e sua definição depende de seu retomo para o produtor: em sua primeira fase, a atividade liberada pelo princípio emissor é uma espécie de matéria informe ou um ente em potência, que será informada ou atualizado na segunda fase. A realização do produto se dá, portanto, em dois momentos, ou fases, que são separáveis apenas logicamente: a primeira fase é processiva e, nesse momento, o produto ainda é indeterminado por não possuir conteúdo essencial; na secunda fase, marcada pelo movimento de retorno, o produto se volta para seu produtor e, contemplando-o, locupleta-se de conteúdo, recebe sua forma e atinge a perfeição que lhe é possível (III. 4 (15) 1. 6-16; V. 1 (10) 6.50). Essas duas fases também obedecem ao princípio anterior, da degradação progressiva; a capacidade de contemplação decresce e, como o poder de conversão do produto é cada vez menor, seu conteúdo é cada vez mais inferior, assim como sua capacidade de produzir: o engendramento perfeito é o do intelecto, produto do mais perfeito dos produtores (III. 8 (30) 11.1-15), e o mais débil é o da matéria, que já não é capaz de contemplar e, em consequência, de engendrar outra coisa (III. 4 (15) 1; III. 9 (13) 3. 7-16). (BARACAT)

1)
Em minha dissertação de mestrado (Plotino, Sobre a natureza, a contemplação e o uno (III. 8 (30
2)
Plotino o aplica ao primeiro princípio em V. 4 (7) 2. 26-38, mas cumpre notar que Meijer (1992, pp. 27-52) mostra de modo convincente que a noção de uno absolutamente transcendente só está presente em Plotino a partir do nono tratado (VI. 9); nos oito primeiros, o uno ainda se confunde com uma espécie de intelecto mais elevado.