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Enéada VI, 1, 10 – A qualidade

10. No que concerne à qualidade, da qual provém o chamado “qualificado”, é preciso primeiro compreender qual é sua natureza, aquela que lhe permite fornecer o que se chama “qualificações”, e perguntar se, sendo una e mesma em virtude do que tem de comum, ela engendra as espécies por meio das diferenças. Ou se, as qualidades sendo tomadas em vários sentidos, não constituirão um só e mesmo gênero.

O que há de comum entre o estado ou a disposição, a qualidade passiva, a configuração ou a forma? E o que será do fino, do grosso e do magro? Se dissermos que o que há de comum é a potência que convém tanto aos estados, às disposições quanto às potências naturais, e graças à qual o que a possui tem a potência que tem, os casos de ausência de potência não entrarão neste gênero. Além disso, a configuração ou a forma inerente a cada indivíduo, como poderia ser potência? Ora, o ser enquanto ser não terá nenhuma potência antes que a qualidade se tenha acrescentado a ele. Mas então, os atos das realidades, todos aqueles que são atos no sentido mais forte do termo, realizam o que, em matéria de qualidade, depende deles, e são o que são conforme às potências que lhes são próprias.

Mas as qualidades não dependem de potências que são as das realidades mesmas? Por exemplo, a potência de lutar não pertence ao homem enquanto homem, enquanto a racionalidade lhe pertence. Mas então, não é a racionalidade assim compreendida que é uma qualidade, mas sim a racionalidade que alguém adquire pela virtude, esses dois tipos de racionalidade tendo em comum apenas o nome. A qualidade será portanto uma potência que acrescenta às realidades o fato de serem qualificadas ulteriormente. Mas as diferenças que distinguem as realidades umas das outras têm apenas o nome em comum com as qualidades, pois são antes atos, isto é, “razões” ou partes de “razão”, mesmo que não manifestem menos o “que é” a coisa, mesmo que pareçam designar a realidade provida de qualidade. E as qualidades propriamente ditas, em virtude das quais somos qualificados, e das quais dizemos naturalmente que são potências, têm como traço comum serem espécies de “razões”, e por assim dizer formas, como a beleza e a feiura na alma e no corpo também.

Mas como todas essas qualidades seriam potências? Admitamos que a beleza e a saúde o sejam, para o corpo e para a alma. Mas como o feio, o doente, a fraqueza e em geral a ausência de potência podem sê-lo? Porque, dizem, é graças a elas que somos qualificados. Mas o que impede o termo “qualificado” de ser empregado de modo equívoco, e não segundo uma só e mesma definição; o termo não seria empregado apenas em quatro sentidos diferentes, mas ao menos de duas maneiras diferentes para cada um dos quatro sentidos.

É preciso dizer primeiro que não é segundo o agir e o padecer que a qualidade é dividida, de modo que o que pode agir é uma qualidade em um sentido, e o que pode padecer o é em outro sentido. Mas, como se é qualificado pela saúde segundo uma disposição e um estado, sê-lo-á também pela doença, e pelo vigor e pela fraqueza. Mas se tal é o caso, a potência não é mais algo de comum, e é preciso buscar outra coisa que seja comum. Além disso, as qualidades não seriam todas razões; pois como a doença, tornada um estado, poderia ser uma “razão”? Enquanto essas qualidades consistiriam em formas e em potências, as outras seriam privações? Desde então, não haveria um gênero único, mas as qualidades se reduziriam a uma unidade, que seria uma só e mesma categoria; como por exemplo a ciência que é uma forma e uma potência, enquanto a ausência de ciência é uma privação e uma ausência de potência.

Mas a ausência de potência e a doença são uma espécie de forma, e podem fazer e fazem muitas coisas, embora seja para o pior; como ocorre com a doença e o vício. Mas quando uma qualidade consiste no fato de errar o alvo, como poderia ser uma potência? Cada uma exerce sua função própria, sem se importar em acertar; pois não poderia produzir algo que não tem a potência de produzir. A beleza tem a potência de fazer algo. Ocorre o mesmo com o triângulo? De modo geral, nem mesmo convém voltar os olhos para a potência, mas é preciso interessar-se antes à disposição; de modo que a qualidade corresponda por assim dizer às figuras e às características, o elemento comum sendo a figura, isto é, a forma que está na realidade e que vem depois dela.

Mas então, mais uma vez, de que maneira as qualidades poderiam ser potências? Mesmo aquele que por natureza possui a potência de lutar a possui porque está disposto a isso, e ocorre o mesmo com aquele que, em algum domínio, é desprovido de potência. E de modo geral, a qualidade é uma característica que não é a realidade como tal, mas algo que, permanecendo idêntico, parece contribuir tanto para a realidade quanto para o que não é a realidade, como o calor, a brancura e a cor em geral. O que pertence à realidade é uma coisa, seu ato por assim dizer, enquanto o que é secundário, o que deriva do primeiro e que é outra coisa em outra coisa, é uma imagem do primeiro e lhe assemelha.

Mas se a qualidade corresponde à forma, à característica, isto é, à “razão”, como dar conta da ausência de potência, da feiura? É preciso responder que são “razões” inacabadas, como no caso da feiura. E no caso da doença, como dar conta da “razão”? Nesse caso também, é preciso dizer que há uma “razão” que se modifica, a da saúde. Ou antes, é preciso dizer que nem tudo está contido em uma “razão”, mas que, em matéria de elemento comum, basta, além do fato de estar disposto de certo modo, que essa disposição seja exterior à realidade; o que se acrescenta a um substrato depois de sua realidade, é uma qualidade desse substrato. O triângulo é a qualidade do substrato no qual está: não falo do triângulo tomado em sentido estrito, mas do triângulo que está nesse substrato e enquanto lhe deu sua forma.

Mas dir-se-á que a humanidade deu sua forma ao homem? Não, ela lhe deu sua realidade.

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