Valorização do Empírico em Ficino (Cassirer)
CASSIRER, E. El problema del conocimiento en la filosofia y en la ciencia modernas. Wenceslao Roces Suárez. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1953.
Como podemos observar, na doutrina de Ficino, dois motivos fundamentais se entrelaçam e se confrontam. A perspectiva do inteligível significa, ao mesmo tempo, para ele, como para todo o Renascimento, a elevação e a valorização do ser empírico. Também palpita neste pensador aquele espírito do círculo platônico dos florentinos que se expressa, por exemplo, nos hinos de Lorenzo, o Magnífico.
“Enquanto os homens da Idade Média consideram o mundo como um vale de lágrimas confiado à guarda do papa e do imperador até a chegada do Anticristo; enquanto os fatalistas do Renascimento oscilam entre períodos de energia e períodos de resignação surda ou superstição, vemos como no círculo dos espíritos selecionados surge a ideia de que o mundo visível foi criado por Deus em um ato de amor, que é a imagem do protótipo pré-existente nele e que Deus será sempre seu motor permanente e seu recriador constante. A alma do indivíduo pode, através do conhecimento de Deus, reduzir essa imagem aos seus limites estreitos, mas também pode, pelo amor a Ele, estender-se até o infinito, ganhando assim a bem-aventurança na terra” (Burckhardt).
Também em Ficino vemos que a comunhão da alma com o corpo e com o mundo dos sentidos não representa simplesmente a queda da natureza original e superior daquela, mas algo que o pensador se esforça por compreender em seu valor e em sua necessidade. Se o espírito persistisse em sua própria entidade intangível, ficaria vedada a ele toda intuição e todo conhecimento do concreto. Viveria nele apenas o conceito geral e abstrato, enquanto a beleza e a variedade das formas concretas escapariam para sempre à sua apreensão. E é precisamente aqui que residem para o homem o sentido e o significado de sua existência empírica: “a vida palpita para nós no brilho das cores”.
Um sentimento fundamental moderno se expressa aqui nos conceitos e nas formas da concepção astronômica tradicional do universo. A Terra não é uma morada baixa e desprezível; é o coro intermediário do templo divino e o firme fundamento em torno do qual giram, como em torno de seu eixo, todas as esferas celestes. A mobilidade e mutabilidade do ser terreno não constituem um defeito interior, mas, pelo contrário, fornecem-nos a contra-imagem necessária sem a qual não poderíamos perceber nem desfrutar a quietude e a paz em Deus.
Talvez o próprio Deus tenha disposto que os espíritos de ordem superior tenham acesso aos prazeres divinos por si mesmos, enquanto os de ordem inferior tenham que se esforçar para alcançá-los; que enquanto uns participam da bem-aventurança desde que nascem, os outros tenham que conquistá-la ao longo da vida. Deus zela assim para evitar que os espíritos superiores se deixem levar pela soberba e os inferiores vençam pelo desprezo, pois os primeiros recebem sua bem-aventurança de fora, enquanto os segundos a criam e adquirem por si mesmos.”
Desta forma, a própria imperfeição do indivíduo se transforma em testemunho de seu valor imperecível e de seu destino eterno.
No entanto, apesar de todas essas tentativas, muito características e importantes, Ficino não consegue dominar e reduzir plenamente o pensamento da transcendência. Este pensamento, no final das contas, continua a imperar como ideal em todo o seu sistema. Dionísio, o Areopagita, é quem proclama e nos garante a autêntica filosofia platônica, porque nos ensina a buscar a luz divina, não pela ação do intelecto, mas por meio do afeto e da vontade, como algo que está acima de todo ser e de todo conhecimento.
“Eleve-se acima não apenas das coisas sensíveis, mas também dos objetos inteligíveis; abandone o campo do intelecto e eleve-se — por meio do amor ao único e supremo bem — aos domínios do próprio bem, situado acima de todo ser, de toda vida e de todo entendimento”.
A relatividade, que até pouco tempo atrás parecia ser compreendida como uma necessidade do conhecimento humano, volta a se apresentar aqui, portanto, como seu limite (cf. supra, p. 119). Nessa dualidade se revela diante de nós a profunda luta conceitual que percorre toda a filosofia do Renascimento e com a qual ainda hoje nos deparamos sob diversas formas.
