Azara (Ficino, 1993) – Pensamento de Ficino
AZARA , Pedro.- “ Introducción ” en FICINO , Marsilio.- Sobre el furor divino y otros textos , Barcelona , Anthropos , 1993
Segundo Ficino, o todo se organiza, de modo geral, em cinco graus e fases distintos, que se referem mutuamente uns aos outros, para retornar por fim, em sua contínua sucessão, ao Ser Uno e incondicionado.
A ordenação da realidade empírica se estrutura e organiza conforme a participação nos dois princípios opostos da pluralidade e da unidade. Partindo do corpo e das qualidades corporais, o caminho conduz à alma humana e desta, por sua vez, eleva-se às “inteligências” celestes puras e ao ser divino.
Enquanto o corpo como tal, graças à divisibilidade ao infinito, se decompõe simplesmente numa pluralidade de elementos, sem possuir em si um princípio de limitação e determinação, as qualidades, como a luz e a cor por exemplo, já figuram num grau superior. Embora também pareçam estar aderidas à matéria e só se manifestem nas massas extensas, a verdadeira origem de sua ação não deve ser buscada, no entanto, no campo do mais ou menos puramente extensivo. Não necessitam da extensão em comprimento, profundidade e largura, mas já se contêm, em sua totalidade e indivisas, em cada uma de suas partes, por menores que sejam, em cada ponto da massa.
São, portanto, na realidade, naturezas e determinabilidades individuais, às quais não afeta em nada a divisão do “sujeito” corpóreo no qual momentaneamente se apresentam. Assim, por exemplo, o branco contido em qualquer parte de um corpo branco não pode ser pensado, rigorosamente, como uma parte da qualidade, mas apenas como a qualidade de uma parte: a desintegração afeta apenas o substrato material, não a cor em si, que revela por toda parte a mesma natureza e qualidade “indivisíveis”. A “ratio albedinis” ou qualidade da brancura é a mesma em todo o corpo e em cada uma de suas partes integrantes.
Assim, encontramo-nos aqui com uma nova relação entre a unidade e a pluralidade: o traço distintivo da qualidade não é obtido por via de síntese, mas é captado como uma unidade essencial, que só participa das determinações da quantidade de modo mediato, ao estender-se sucessivamente, por assim dizer, sobre as distintas partes de um corpo.
E é nas qualidades dos corpos que residem todas as suas forças e capacidades de ação, já que a simples massa indistinta como tal é totalmente passiva e inerte; o que significa que toda potência e toda atividade atribuídas por nós a um corpo têm sua origem e devem buscar seu fundamento último não no material dele, mas numa “natureza incorpórea”.
Toda essa discussão de Ficino, embora tenda a chegar a conclusões de ordem metafísica, encerra, no entanto, ao mesmo tempo, na separação conceitual que estabelece entre a quantidade e a qualidade, um fundo lógico puro, um conteúdo que ressalta com clareza e nitidez quando o comparamos, olhando para trás, com a doutrina de Nicolau de Cusa e, olhando para frente, com a de Leibniz (cfr. supra, pp. 85 s.).
O segundo grau, designado pela qualidade, é aquele sobre o qual se elevam as outras forças espirituais do universo. Enquanto o corpo representa — segundo o critério dos pitagóricos — a pluralidade pura e simples, e a qualidade a pluralidade, na medida em que esta se combina com a unidade e participa dela, a alma é a unidade originária, que, no entanto, precisa enfrentar a variedade para nela adquirir a consciência de si mesma. Enquanto a cor branca, mesmo distinguindo-se conceitualmente do corpo em que se dá, está como presa e enredada nele quanto à sua realidade empírica, a alma conserva dentro de sua comunidade com o corpo no qual reside seu próprio ser substantivo e a independência de sua própria natureza. Não está contida nele nem como uma parte no todo nem como o ponto na linha.
Pois o ponto, mesmo representando uma unidade fechada em si e indivisível, indica uma situação isolada dentro do espaço e expressa, nesse sentido, uma determinabilidade local limitada. A alma, ao contrário, deve ser concebida como a unidade que encerra e faz brotar de si mesma uma totalidade infinita de determinações; nesse sentido, deve ser comparada não a qualquer ponto, mas, por exemplo, ao centro de um círculo, que pode referir-se igualmente, para que o conceito do círculo se cumpra, a todos os pontos da periferia. É, portanto, de certo modo, “um ponto vivo em si mesmo”, não sujeito a nenhuma quantidade nem a nenhuma situação determinada, mas capaz, partindo de dentro, de desenvolver-se livre e ilimitadamente para a variedade, sem perder-se nela.
São também alguns dos motivos fundamentais da filosofia de Nicolau de Cusa os que aqui seguem influenciando Ficino. A alma é ao mesmo tempo divisível e indivisível, igual por sua essência à suprema unidade absoluta e constantemente orientada para a pluralidade e as mudanças do mundo dos corpos. Constitui a verdadeira e mais profunda maravilha da criação, pois todas as demais coisas, por mais perfeitas que as representemos, possuem e encarnam sempre um ser especial, enquanto ela representa e contém o universo em sua totalidade. “A alma abriga em si as imagens das entidades divinas, das quais depende, como os fundamentos e os protótipos das coisas inferiores, que de certo modo cria por sua própria conta. É o centro do universo e nela se cifram e condensam as forças de tudo. Adentra-se em tudo, mas sem abandonar uma parte quando se dirige à outra, pois é o verdadeiro elo das coisas. Daí que possamos chamá-la com razão o centro da natureza, o foco do universo, a cadeia do mundo, a face de tudo e o nexo e o vínculo de todas as coisas.” Toda coisa sensível tende, por virtude de sua própria natureza, a remontar-se à sua origem espiritual e superior, mas essa reversão interior não pode operar-se nas coisas mesmas nem nas substâncias espirituais que estão sobre nós ou ao nosso redor, mas somente na alma do homem. Somente ela pode impregnar-se plenamente com a consideração do concreto e do material sem deixar-se aprisionar por isso; somente ela pode elevar as mesmas percepções dos sentidos ao plano do geral e do espiritual. “E assim, o raio divino que se derrama sobre o mundo inferior volta a projetar-se, graças a ela, para as regiões mais altas… É o espírito humano quem restaura o universo estremecido, pois graças à sua atividade depura-se e esclarece-se continuamente o mundo corpóreo, aproximando-se cada dia mais do mundo espiritual, do qual um dia emanou.” Nessas palavras, nas quais se afirma a singular posição e significação cósmica da alma humana, reside o fundamento mais profundo e substancial da influência que a Academia platônica exerce sobre toda a cultura filosófica e artística dessa época; os pensamentos que aqui Ficino expressa ressoarão, com o tempo, no discurso de Pico della Mirandola sobre a dignidade do homem e, animados por uma força e profundidade extraordinárias, nos sonetos de Michelangelo.
No entanto, por muito que nos movamos aqui sob o influxo de Plotino e de suas doutrinas estéticas fundamentais, vemos já transparecer neste ponto um novo interesse que aponta para uma nova abordagem, para uma abordagem moderna do problema. O neoplatonismo indica, sem dúvida, o caráter geral da doutrina de Ficino, mas não esgota a totalidade de seu conteúdo nem sua significação histórica. Quantos até agora estudaram o platonismo de Ficino detiveram-se exclusivamente nesse traço, mas isso os levou a perder de vista justamente os germes mais vigorosos e fecundos que esse pensador aporta à filosofia e à ciência do futuro.
