Cassirer (1953:126-130) – Refutação da "Abstração" em Ficino
CASSIRER, E. El problema del conocimiento en la filosofia y en la ciencia modernas. Tr. Wenceslao Roces Suárez. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1953.
Ficino refuta com toda clareza e toda energia a teoria sensualista da “abstração”. Se fôssemos obrigados, diz, a derivar o geral da mistura de casos concretos, não teríamos remédio senão ver nesse objetivo, desde o primeiro momento, um postulado falso e ilusório. Por quê? Porque a totalidade do concreto é simplesmente inesgotável. E se pretendêssemos abstrair de um número limitado de casos ou de fatos uma regra, para depois estendê-la à totalidade deles, quem poderia assegurar-nos que havíamos sabido captar cabalmente os critérios essenciais e absolutos, aqueles que não radicam na natureza puramente fortuita do concreto?
Eis por que a formação dos conceitos e das leis gerais só pode chegar a compreender-se se não virmos neles a simples repetição da matéria dada, mas uma criação espontânea do intelecto. E esta obra de criação não precisa, para realizar-se, recorrer à mediação de nenhum elemento estranho, pois o próprio espírito encarrega-se de fornecer a matéria plasmada e modelada por ele. Processo este que seria, certamente, incompreensível se o espírito permanecesse em si mesmo plenamente passivo e carente de critério desde o primeiro instante, quando na realidade devemos já supor em seu ser “interior” o conteúdo de todas aquelas formas com as quais exteriormente nos encontramos no mundo dos objetos.
Ficino distingue, pois, nitidamente as duas operações, consistindo uma na limitação habitual do pensamento à “abstração” e outra em sua verdadeira ação construtiva: “veras definitiones essentiarum non potest mens per accidentalia rerum simulacra fabricare, sed eas construit per infusas ab origine rerum omnium raciones”.
O pensamento é sempre uma construção e um desenvolvimento a partir daqueles primeiros fundamentos e premissas inatos. São eles — o exemplo da matemática demonstra-o claramente — que nos fornecem as regras ideais para contrastar as percepções e sua exatidão, as quais não encontram nem podem encontrar, portanto, seu limite e sua medida nas sensações e em seus objetos. As “espécies” conceituais puras não surgem do contato com o mundo exterior; este não as cria, mas limita-se a fazê-las despertar e florescer; o que Aristóteles chama sua criação, deve interpretar-se simplesmente, com Platão, como seu esclarecimento. Já o simples fato de perguntarmos por um conteúdo qualquer e investigá-lo indica que este conteúdo não se encontra totalmente à margem de nossa órbita, pois como poderíamos desejar aquilo que nos é totalmente desconhecido?
Ficino apoia-se aqui, como antes dele fizera Nicolau de Cusa, no pensamento fundamental do Mênon platônico, pensamento que nos acompanhará daqui em diante, ao longo de uma série de vicissitudes históricas (cfr. supra, pp. 91 s.). Nenhum saber pode ser imposto e inculcado ao indivíduo de fora; o saber tem de ver-se sempre, necessariamente, despertado e estimulado por sua própria natureza: “qui docet minister est potius quam magister”. E como o gênero humano é sempre um e o mesmo e a essência do espírito não varia nunca, a aquiescência a determinadas verdades deve reputar-se como necessária e geral. Ora, a contrastação e a aceitação de qualquer concepção científica exigem como condição indispensável que a regra da verdade resplandeça desde dentro e vá à frente, marcando o caminho.
Característico do círculo de pensamentos e da tônica de que brotou a Academia de Florença é o fato de Ficino encontrar a garantia do valor universal e objetivo das “ideias”, principalmente, no campo da arte. É aqui onde, segundo ele, se manifesta com maior pureza a unidade espiritual inquebrantável da natureza humana.
“Qualquer espírito achará plausível a forma redonda quando pela primeira vez a perceber, e mesmo sem conhecer o fundamento desse juízo. Qualquer um saberá apreciar uma determinada adequação e proporção na estrutura do corpo humano ou a harmonia dos números e dos sons. De certos gestos dizemos que são nobres e belos e enaltecemos a luz da sabedoria e a intuição da verdade. Pois bem, se qualquer espírito aceita e aprova imediatamente tudo isso, onde quer que o observe, sem saber por quê, é indubitável que o faz guiado por um instinto necessário e absolutamente natural”.
Estas afirmações de Ficino encerram o germe de uma nova forma histórica do platonismo, que, anos mais tarde, amadurecerá e se completará em Kepler, apoiando-se sobre fundamentos mais profundos.
Até aqui, os pensamentos fundamentais da teoria das ideias, ainda que se desenvolvam preferentemente desde pontos de vista psicológicos, reproduzem-se, apesar disso, de um modo puro e sem mistura; Ficino, porém, não consegue levar a cabo essa distinção até o fim e de maneira consequente. De novo acabam predominando em sua teoria os motivos neoplatônicos, desta vez na versão da teoria do conhecimento e da metafísica de Santo Agostinho.
O raciocínio é o seguinte. O espírito firma-se sobre seus próprios fundamentos e subtrai-se à dependência da matéria sensível somente para ser absorvido em sua totalidade e em toda sua pureza pelo ser divino primordial situado no além e desaparecer nele. Todo verdadeiro conhecimento equivale a um contato e uma comunidade que estabelecemos com a substância espiritual infinita e perfeita. As “formas” inatas do pensamento careceriam de força e de base se somente existissem em nossa consciência e não tivessem sua correspondência exata em um mundo de verdades espirituais existentes por si mesmas.
E assim, vemos que todo o livro XII da Theologia Platonica dedica-se a demonstrar que a alma humana, em seu conhecimento intelectual puro, acha-se determinada e modelada pela consciência divina “nihil revera disci potest, nisi docente Deo”. Não somos já nós que captamos o infinito e o encerramos dentro de limites conceituais fixos, mas, ao contrário, temos de deixar-nos captar por ele e dissolver-nos nele, para que o conhecimento chegue a ser possível.
Em apoio dessa concepção invoca-se expressamente a teoria do logos do Evangelho de São João, com o que o problema da ciência liga-se e subordina totalmente de novo aos problemas da metafísica e da teologia.
Esta parte da obra de Ficino é também significativa e importante desde o ponto de vista histórico, pois nela volta a projetar-se uma viva luz sobre a concepção agostiniana da teoria das ideias, com o que se prepara e facilita a influência que haverá de exercer esta doutrina sobre a filosofia moderna. Devemos destacar, sobretudo, o estreito entrelaçamento do pensamento que neste ponto existe entre Ficino e Malebranche: os argumentos apresentados por este em apoio da tese de que “todas as coisas são intuídas por nós em Deus” encontram-se agrupados já quase por completo na Theologia Platonica do primeiro.
