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Ficino (TP:18.10) – Condição da alma impura

Para compreender qual é, após a morte, a condição da alma impura, é preciso levar em conta os hábitos e os costumes dos vivos. Na maioria das vezes, os costumes da adolescência tornam-se os hábitos da velhice e são também as disposições dos defuntos. É na vida presente que têm origem a virtude e o vício. Com a virtude começa a recompensa, com o vício o castigo. Virtude e vício encontram seu pleno desenvolvimento na vida futura: é lá que recompensa e castigo se realizam. A virtude é uma recompensa nascente, a recompensa, uma virtude plenamente desenvolvida. O vício é um castigo que começa, o castigo um vício consumado. O que não era senão semente torna-se colheita. O que era colheita torna-se alimento. Portanto, o que semeamos durante este outono aqui embaixo, colheremos lá em cima durante o verão. Dele nos alimentaremos ou por uma noite sombria nos pântanos do Estige ou por um dia sereno nos Campos Elísios.

Assim como a natureza, serva da divina Providência, por uma ação intrínseca, faz subir os corpos graças à leveza e os faz descer graças à pesantez, do mesmo modo a Providência, por uma lei intrínseca, comparável a uma inclinação natural, conduz todas as coisas. É por essa lei, gravada nelas, que as inteligências superiores e as almas, sob a condução do guia soberano, governam o universo. É por essa lei, infundida da mesma maneira, que as inteligências humanas se dirigem para os lugares que correspondem ao seu gênero de vida. Do mesmo modo que os humores no ser vivo obedecem a dois princípios de movimento, a saber, o princípio natural e o princípio animal (pelo princípio natural os que são leves se dirigem na maioria das vezes para cima, os que são pesados para baixo, enquanto pelo princípio animal se dirigem preferencialmente para os membros que mais precisam deles, segundo as exigências da vida do ser vivo), do mesmo modo as almas possuem interiormente dois princípios de movimento, um, que é um ímpeto ou um juízo que lhes é próprio, outro que é a lei da divina Providência, devidamente gravada no mais profundo delas. Pelo primeiro, são levadas para tais ou quais maneiras de viver, pelo segundo, segundo os hábitos contraídos, são levadas por uma inclinação intrínseca e oculta para os lugares, os castigos ou as recompensas, que correspondem à sua conduta.

Essa opinião, adotada pelos antigos, é muito frequentemente aprovada por Platão. Todos os platônicos sem exceção também a confirmam. Alguns, porém, consideram essa lei da Providência sempre boa em si e divina, sob um duplo aspecto, chamando-a graça e bom demônio, quando recompensa os méritos dos bons, e às vezes Nêmesis, Fúria e mau demônio, quando conduz os pecadores aos castigos. Essa lei dirige de dentro, à maneira da natureza e tão suavemente que, até chegar ao término de seu ato, ninguém tem consciência de uma coerção por parte da Providência. No entanto, o universo, que muitas vezes estaria em desacordo devido ao primeiro princípio do movimento das almas, recupera toda a sua harmonia por esse segundo princípio do movimento, enquanto os indivíduos adquirem gradualmente seus méritos por um movimento próprio. Além disso, não nos faltam bons demônios, chamados gênios, guias assíduos do nosso temperamento, que dirigem não pela violência mas pela persuasão. Há também os maus, que não foram instituídos guias pela natureza, mas adversários, por assim dizer, estranhos, e que os platônicos pensam afastar nesta vida pela filosofia e pelos sacrifícios. Mas Platão e Hermes dizem que, após sua vida, as almas más, mudando de gênio, caem sob o domínio do mau demônio, isto é, depois de terem sido conduzidas por seu gênio diante do juiz que não se pode enganar, e isso tanto menos que nas almas separadas tudo é visível, tanto o que nelas decorria de sua natureza, quanto de suas maneiras de ser. Por isso Sócrates, no Górgias, diz: “Deixando todo o resto de lado, examino como poder apresentar ao juiz uma alma muito sã”. O pior dos males, de fato, é descer aos infernos com a alma cheia de faltas. Ele acrescenta, tanto nesse diálogo quanto no Teeteto e na República, que não são palavras das quais se deve rir como de fábulas, pois todos os que negam tais crenças propõem sempre em seu lugar teorias ridículas. Recomenda, em consequência, esforçar-se por adquirir costumes excelentes, pois, diz ele, os costumes são o caminho que leva ou para os deuses inferiores, ou para os deuses superiores.

Acho que temos todo interesse em examinar em detalhe o que ele escreve sobre isso na República e no seu Teeteto. De fato, aqueles que, diz ele, pensam que se deve seguir a justiça ou evitar a injustiça por causa das recompensas ou das punições humanas são profundamente ridículos. A opinião mais verdadeira é a que afirma que as verdadeiras recompensas ou os verdadeiros castigos não são os que acompanham às vezes ou por acaso as virtudes e os vícios, mas os que os seguem sempre e segundo a ordem necessária. Ele acrescenta no seu Teeteto que Deus é a justiça mesma, que nada se assemelha mais a ele do que o justo, que nada lhe é mais dissimilável do que o injusto; que se deve, além disso, considerar como a verdadeira sabedoria a que sabe isso, a verdadeira potência a que a obtém a seu gosto, e que o hábito contrário deve ser considerado como o último grau da ignorância e da fraqueza. Depois, coloca no universo dois modelos opostos entre si: no topo uma divindade bem-aventurada e no fundo o seu contrário, privado de divindade e infeliz ao extremo. Afirma que, devido à sua total ignorância, os homens injustos nunca se dão conta de que sua injustiça os torna dia após dia mais dissimilares da divindade bem-aventurada e mais semelhantes aos mais infelizes, que, além disso, essa dissimilaridade ou essa semelhança é o castigo reservado à injustiça, e que a semelhança com os bem-aventurados ou a dissimilaridade com os infelizes é considerada como a recompensa própria da justiça. Acrescenta que nem nesta vida nem na outra os homens injustos são recebidos na pátria da bem-aventurança, porque não se assemelham a ela, que, ao contrário, são reconduzidos, como convém, por seus hábitos ao último grau da miséria, ao qual se tornaram semelhantes, e que erram sempre em uma região insalubre, como eles, entre os malvados que lhes são semelhantes. Acrescenta, por fim, que certos homens pretensiosos têm o hábito de ridicularizar essa doutrina, mas que, se são obrigados a se explicar sobre esses problemas ou a ouvir atentamente o que se diz a respeito, retiram-se finalmente, como já dissemos, verdadeiramente confundidos e tão ridículos quanto crianças.

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