renascenca_platonica:marsilio_ficino:ficino-tp18-8-3-da-condicao-da-alma-pura

Ficino (TP:18.8.3) – Da condição da alma pura

Toda inteligência criada, ao olhar seja para sua essência, que aqui difere da existência e se encontra numa espécie definida, infinitamente distante de Deus, seja para sua luz própria ou qualquer luz determinada nela, não pode compreender a substância divina cuja natureza, por ser infinita, não pode ser representada tal como é de maneira adequada por algo finito. Por essas faculdades, de que acabamos de falar, as inteligências sabem apenas que Deus existe, e o que ele não é mais do que o que ele é, e qual relação há entre ele e os outros seres.

Tudo isso Platão prova no Parmênides e Dionísio Areopagita confirma na Teologia Mística, concluindo que no mais alto grau do conhecimento natural as inteligências estão unidas a um Deus por assim dizer desconhecido, como um olho ofuscado pela luz do sol. Nesse tipo de conhecimento, seu desejo natural não é satisfeito. Pois tudo o que, numa espécie determinada, é imperfeito tende à perfeição própria dessa espécie. Ora, esse modo de conhecimento é reputado imperfeito no âmbito do conhecimento. De fato, normalmente não nos satisfazemos com nenhum modo de conhecimento enquanto ele não nos revelar o que o objeto é em sua substância. Além disso, é natural à razão avançar continuamente de uma razão a outra, até chegar à razão primeira, que por ser infinita, pode sozinha pôr um termo às investigações da razão, que por si mesma continuaria sem fim suas vãs buscas, pois depois de esgotar o finito, a inteligência sempre leva seu esforço adiante, como se pode julgar pelos números, linhas, figuras e proporções. Daí vem que ela só pode repousar na substância de Deus, que é infinita.

Há motivo para crer que isso decorre do fato de que tanto a penetração natural da inteligência quanto o ardor natural da vontade são uma espécie de raio, transmitido diretamente pela luz divina mesma, graças a seu brilho, que naturalmente reflui para ela e não descansa até se reintegrar em seu sol. Por consequência, quanto mais um ser se aproxima de seu fim natural, mais violento é seu movimento para alcançá-lo. Isso é manifesto nos movimentos dos elementos. Ora, as inteligências separadas estão, por seu conhecimento natural, mais próximas de Deus que as inteligências unidas a corpos. Logo, se as nossas não estão saciadas no termo de seu conhecimento natural, aquelas ainda menos. Mas como o apetite natural de qualquer espécie, dirigido pela natureza universal, não deve permanecer totalmente vão, é preciso que todas as inteligências possam ver a substância divina, sem a qual sua visão é imperfeita. E já que não podem vê-la numa espécie criada e no entanto deve existir uma forma que lhes permita vê-la (forma, digo, própria à substância divina, e graças à qual a veem não de modo imaginário, mas realmente), é necessário que estejam unidas à substância divina de tal modo que a vejam a ela mesma por ela mesma. Observa-se algo semelhante na visão que, à luz, distingue bem as cores por meio de suas imagens, mas não pode ver a luz senão pela própria luz.

Todavia, para que não se ache absurdo unir Deus como uma forma ao intelecto, é preciso lembrar que a perfeição da inteligência se refere ao verdadeiro. Ora, o verdadeiro, o ser e o inteligível são uma só e mesma coisa. Tudo o que nesse gênero é composto de essência e existência comporta-se mais como existente e como verdadeiro do que como existência e verdade e não pode ser forma das outras no mesmo gênero, pois sua forma em si já está reduzida, por assim dizer, à sua própria matéria. Por isso, nenhuma inteligência criada pode tornar-se a forma das outras inteligências. Ao contrário, só Deus comporta-se em todo lugar perante o gênero das inteligências como uma forma, ele que só é o Ser em si e a Verdade mais absoluta; como uma forma, digo, não enquanto parte de um composto, mas como princípio de operação em virtude do qual a inteligência age mais como Deus do que como inteligência, como o ouro em fusão que, no Apocalipse, João aconselha a comprar e que age mais como fogo do que como ouro.

/home/mccastro/public_html/platonismo/data/pages/renascenca_platonica/marsilio_ficino/ficino-tp18-8-3-da-condicao-da-alma-pura.txt · Last modified: by 127.0.0.1