Ficino (TP:18,9) – Do corpo dos bem-aventurados
Uma dupla felicidade convém à alma pura: uma vem da própria alma, e já falamos dela; a outra vem do corpo. Eis como os platônicos a concebem. Mas é preferível expô-la através de um exemplo.
O olho é redondo, transparente, brilhante, dotado de um movimento muito rápido, admirável pela sua penetração. Ele vê o meu olho e vê a si mesmo no meu. Reflete em si cada uma das emoções da tua alma, transmite-as ao meu e, reciprocamente, recebe através do meu as minhas próprias emoções. Os famosos veículos das almas, neles e entre eles, fazem o mesmo. Cada um deles, de fato, é um olho completo, comportando-se em quase tudo da mesma maneira que os próprios olhos. Consequentemente, como os olhos, eles são redondos, transparentes, brilhantes, dotados de um movimento muito rápido e veem com muita facilidade todas as coisas onde quer que estejam. Manifestam as emoções e os pensamentos de suas almas e os indicam facilmente às outras almas por meio de uma espécie de sinal. Da mesma forma, também recebem delas os sinais dos sentimentos e pensamentos dos outros. Não apenas veem de longe e com muita clareza em todas as direções, mas também ouvem. Da mesma maneira, todas as estrelas e os demônios formam facilmente palavras fáceis de interpretar e, assim como lá em cima os sentidos estão livres de paixões, assim também são essas palavras, que certamente são de outra espécie e outro gênero que as nossas. Tal é a opinião de Plotino e de Hermias.
Na sua Metafísica, Avicena confirma a opinião platônica, provando que a alma, livre da influência do corpo, serve-se no céu, como se lhe pertencesse por direito, de uma espécie de instrumento celestial que recebeu do corpo do céu e graças ao qual cumpre o papel da imaginação. Avicena afirma, de fato, que a alma inteligente, segundo a opinião de Platão, é superior em dignidade e poder natural a toda a massa do corpo. Por fim, esses veículos, cheios do esplendor superabundante de suas inteligências, resplandecem de maneira maravilhosa; e o céu inteiro lhes é acessível como a raios. Segundo a opinião de muitos platônicos, eles brilham especialmente na Via Láctea da mesma maneira que as estrelas. É por isso que os poetas da antiguidade diziam que, quando as almas bem-aventuradas voltavam voando para junto dos deuses superiores, novas estrelas brilhavam no firmamento. Mas isso é a opinião deles.
Além disso, os discípulos de Zoroastro, Porfírio, Platão, e especialmente Plotino e Proclo sustentam que um dia, se as causas se apresentarem exatamente as mesmas, os mesmos homens voltarão em número absolutamente igual. Platão, no seu Político, diz que, após a atual e fatal trajetória do universo, as almas dos homens, por ordem e chamado de Deus, retomarão os corpos que perderam durante essa trajetória, para que, assim como por ordem do destino os corpos humanos caíram outrora na terra, assim também por ordem da divina Providência eles ressurgirão da terra e reviverão. Esses mistérios dos filósofos da Antiguidade não apresentam grande diferença em relação aos dos hebreus e dos cristãos, e são mesmo confirmados pelos maometanos. Essas três Leis, de fato, concordam em pensar que o movimento em si mesmo não pode ser realmente um fim em si, porque sempre flui de um ponto a outro. Ora, esse próprio fato de tender para outro é absolutamente incompatível com a razão de fim, sobretudo de fim último. É por isso que o fim supremo e último do universo, aquele que o mundo deve um dia alcançar, já que até mesmo os seres particulares, inferiores ao universo, alcançam um dia seu fim particular, não será o movimento, mas o repouso, porque o repouso é mais perfeito que o movimento e é em vista do repouso que todo ser é movido. Além disso, o corpo do universo será o mais belo nesse repouso, dado que esse repouso será o mais absoluto. Por fim, quando a trajetória do céu, que dá origem a tudo, for cumprida, nada mais nascerá, mas todos os corpos dos homens, para os quais tudo era gerado antes, se levantarão da terra por ordem de Deus.
Eles fundamentam essa ressurreição em primeiro lugar na autoridade divina. De fato, Deus a predisse muitas vezes por seus Profetas e Apóstolos e, em diferentes épocas, muitos mortos ressuscitaram. Além disso, santos personagens operaram milagres, mesmo após sua morte, e os operam todos os dias. Deixo de lado os outros exemplos, são inumeráveis. Em todo caso, em nossa época, no ano , em dezembro e em janeiro, a descoberta de relíquias do apóstolo Pedro, na cidade de Volterra, deu origem a doze milagres insignes, dos quais um povo inteiro foi testemunha. Esses fatos e outros semelhantes são sinais muito sérios da ressurreição. Também Avicena afirma na sua Metafísica que é preciso crer na autoridade divina, quando ela atesta a ressurreição. Embora Avicena não tente trazer a menor prova de um fato tão importante, os teólogos cristãos, para nos convencer, propõem as seguintes razões.
Primeira razão. Da alma e do corpo humano resulta um composto único natural, e a alma está unida ao corpo por um instinto natural. Disso resulta evidente que não é apenas em virtude da ordem do Todo, mas também em conformidade com a ordem de sua própria natureza que a alma está unida ao corpo. Daí se segue que seria tão contrário à ordem da natureza universal quanto à ordem de sua própria natureza que a alma permanecesse separada do corpo. Ora, as almas permanecem eternamente após a destruição do corpo. E como nada que seja contrário à natureza pode ser eterno, será necessário, portanto, que um dia as almas retomem seus corpos.
Segunda razão. Toda alma é naturalmente inclinada a vivificar e governar um corpo em particular. A natureza e a providência de uma existência, colocada entre a eternidade e o tempo, comportam assim uma inclinação natural em parte para o eterno, em parte para o temporal. Ora, uma inclinação natural permanece enquanto permanece a natureza. É por isso que, naturalmente, as almas separadas de seus corpos conservarão sempre essa dupla inclinação. Mas uma inclinação e um pendor naturais não devem permanecer eternamente sem objeto. Isso seria totalmente contrário à ordem do universo. Portanto, as almas recuperarão um dia seus próprios corpos, aos quais por natureza estão eternamente ligadas.
Terceira razão. A espécie humana compõe-se de duas partes: uma é a alma, a outra o corpo. Separada do corpo, a alma, enquanto alma, é portanto imperfeita, como toda parte que se encontra fora do todo que ela é destinada a constituir. É por isso que seu desejo natural nunca será satisfeito. Uma alma nunca será feliz se não for reconduzida ou não esperar ser reconduzida ao seu todo, recuperando seu corpo.
Quarta razão. As virtudes merecem suas recompensas, os vícios seus castigos. Como uns e outros não são concedidos nesta vida, sê-lo-ão na outra. Ora, o corpo participa tanto quanto a alma das virtudes e dos vícios. É, portanto, para que ele também obtenha, ao mesmo tempo que a alma, sua parte de recompensas ou castigos que ele é finalmente devolvido à alma.
Não se deve julgar absurdo que as almas recuperem novamente sua condição natural depois de tê-la abandonado, já que os planetas abandonam e retomam seus domicílios naturais. As partículas dos elementos, também elas, muitas vezes expulsas da região que lhes é própria e por muito tempo separadas, tendem sem cessar a voltar para lá e acabam por lá chegar. Não é difícil para o poder infinito de Deus, presente em toda parte, que criou tudo do nada, desprender um dia os corpos dissolvidos em seus elementos, a partir dos elementos que restam. E é o mesmo corpo que será reconstituído, porque a forma será a mesma que outrora, isto é, a alma. Será também a mesma matéria primeira eterna, que é idêntica em todos, e enfim a mesma dimensão indeterminada, que acompanha a matéria. Além disso, não se diz que aqui embaixo todo homem conserva o mesmo corpo desde a infância até a velhice, embora ele se decomponha e se renove continuamente?
Quanto ao corpo, ele ressuscitará absolutamente imortal. Na origem, Deus combinou de fato a ordem dos seres de tal maneira que à alma racional, que é vida eterna e forma natural do corpo, corresponda sua matéria, isto é, o corpo, no sentido de que, graças a essa alma, que vive eternamente e deseja naturalmente fazer viver eternamente o corpo, este corpo possa, como ela, viver eternamente. Tal poder é um bem totalmente conforme à ordem do universo. Consequentemente, quando Deus, que o criou na origem e o criou de tal modo que pudesse viver eternamente, o recriar, realizará sem dúvida o que mais convém, para que um poder tão bom e tão bem adaptado ao universo não seja eternamente inútil.
Além disso, essa nova criação feita por Deus, no momento em que cessa o movimento do mundo, instituído finalmente em vista de um repouso mais perfeito, será orientada para algo verdadeiramente estável. É por isso que o corpo permanecerá sempre unido à alma. Além disso, a intenção da natureza, na geração, tende à perpétua duração pelo menos da espécie, e isso, a natureza o faz porque recebeu de Deus, raiz da perpetuidade, o poder para isso. É por isso que a intenção de Deus na regeneração tende ainda mais que a natureza para algo perpétuo.
Ele recriará, portanto, o homem incorruptível, não apenas na espécie (esse resultado poderia ser assegurado suficientemente pela geração ordinária), mas também individualmente, não apenas no que diz respeito à alma, porque ela já gozava dessa perpetuidade antes, mas ainda no que diz respeito ao corpo.
Acrescente-se que, na geração cotidiana, a alma vem juntar-se ao corpo já formado; nessa regeneração, ao contrário, é o corpo que vem juntar-se à alma. Assim, assim como a vida presente do composto humano segue a condição do corpo corruptível, assim também essa vida futura do composto adquirirá por sua vez a condição da alma imortal, para que finalmente, pelo menos no que diz respeito à espécie mais perfeita dos seres naturais, toda privação em seu modo de ser cesse, e a morte, porque é a mais fraca, seja engolida pela vida, como dizem os Profetas. Além disso, os corpos ressuscitarão para que as recompensas e os castigos eternos sejam dados também aos corpos, segundo seus méritos. Portanto, eles ressuscitarão eternos. Acrescente-se que eles ressuscitarão também para que as almas não permaneçam sempre imperfeitas. Portanto, já que nesse caso é principalmente a perfeição da alma que está em vista, o corpo será restituído de modo que convenha à alma. Ora, à alma eterna convém um corpo eterno, tal como, segundo o testemunho da Sagrada Escritura, foi dado no princípio do mundo. Essa graça, interrompida por um tempo por um movimento desordenado, será restituída, quando Deus restabelecer finalmente o universo de tal modo que ele seja o melhor.
O que mostra que o estado natural do homem era assim na origem é que, quanto mais o homem supera o animal, mais ele deve poder alcançar seu fim mais facilmente, mais completamente e mais frequentemente que o animal pode alcançar o seu. Ora, no estado presente, é o contrário que ocorre. O que mostra com evidência que é precisamente porque os homens se afastaram de seu equilíbrio primitivo que eles experimentam uma dificuldade muito grande para alcançar sua felicidade e que não a alcançarão mais facilmente senão quando tiverem sido restabelecidos em seu estado anterior. É essa opinião que parece concordar melhor com os mistérios de Zoroastro, Hermes e Platão e com os poetas que transformaram a idade de ouro.
Mas voltemos agora à ressurreição. Portanto, em última análise, é o poder infinito de Deus que é a causa eficiente da ressurreição. É, portanto, da mais alta conveniência que a mesma infinidade de vida que ressuscita corpos já mortos os conserve livres da morte eternamente. Só, de fato, uma vida eterna parece convir doravante a tão grande milagre que é o retorno à vida. Nessa circunstância, o Deus todo-poderoso torna os corpos tão submissos ao poder de suas almas, que a vida eterna da alma reflui eternamente também sobre o corpo. Isso naturalmente convém à forma mais nobre, em relação à matéria que lhe está submetida, e se harmoniza perfeitamente com a ordem da natureza. Mas, segundo os teólogos, convém também admiravelmente à ordem dos méritos que os corpos estejam unidos não apenas do ponto de vista da vida a todas as almas humanas, que são vidas, mas também às almas puras do ponto de vista das qualidades e das ações, da mesma maneira que essas almas estão unidas a Deus. É por isso que o intelecto, inundado da luz divina, e a vontade, cheia por isso de uma alegria e de uma eficácia incomparáveis, transmitem completamente ao corpo uma luz esplêndida e uma eficácia maravilhosa para se mover, de modo que os corpos são elevados à luz e ao poder dos corpos celestes, assim como essas almas são elevadas à luz e ao poder das inteligências celestes. Não há motivo para se admirar de que o corpo humano, que por natureza é bastante semelhante ao céu devido ao seu equilíbrio, seja, quando reveste novamente por uma espécie de graça uma forma celestial, subitamente e completamente transportado para a região celeste, arrastado evidentemente pela alma, sustentada ela mesma pelo poder infinito de Deus. Poder que, mesmo na terra, separada agora de Deus, une, sustenta, eleva o corpo apesar da natureza de seus elementos, mas que então, unido ao Deus supra-celeste, pode mesmo elevar esse corpo com ela até a região superior do éter. E por essa penetração, esse corpo muito puro não incomoda o éter e tampouco é incomodado, agora que se tornou etéreo em poder e qualidade.
