Ficino (TP:18,X) – Repartição das almas
Olimpiodoro confirma a ordem que estabelecemos acima, quando em seu comentário ao Fédon cita, segundo Platão, três tipos de vícios. Em primeiro lugar, os que poderiam ser facilmente curados, porque não criaram hábitos. Depois, os que são dificilmente curáveis, diz ele, porque estão ligados a um hábito, ainda que acompanhados de certa repugnância e arrependimento. Por fim, em terceiro lugar, os que são incuráveis, porque são fruto de um hábito e não geram nem repugnância nem arrependimento.
Os platônicos atribuem aos primeiros o Aqueronte, aos segundos o Periflégetonte e o Cocito, aos terceiros o Tártaro, de onde, diz Platão, ninguém pode jamais sair. Os bons são repartidos em igual número de categorias no Fédon, onde se afirma que as almas inocentes e piedosas, mas ignorantes da filosofia, vivem facilmente no ar com corpos aéreos, mas que as almas que são inocentes e instruídas em filosofia política vivem no céu com veículos celestes e luminosos, e finalmente que as almas mais purificadas vivem muito felizes acima do céu e sem corpos.
Orfeu, por sua vez, reparte as almas em nove regiões principais. As almas dos bons estão ou na oitava esfera, ou nos planetas, ou no éter abaixo dos planetas. Essas nove esferas, se especificarmos mais essa divisão, correspondem aos nove graus de contemplação que mencionamos alhures como convém. Às almas nem boas nem más ele atribui o ar, a água ou a terra, reservando aos réprobos o Aqueronte, o Cocito, o Periflégetonte, onde, além disso, o Estige “interpondo-se nove vezes os encerra”. O número nove provém do fato de terem pecado seja por uma espécie de afeição, seja por uma espécie de hábito variável ou um hábito invariável e, nesses três casos, seja como for, pecaram por pensamento, por palavras e até por ação. Isso justifica o número de nove categorias de faltas e de nove categorias de castigos.
Mas não se deve desprezar, sob o pretexto de que é poético, o oráculo de Virgílio, no sexto canto da Eneida, no qual, seguindo em parte Hermes, em parte Platão, ele descreve quatro disposições que decorrem dos quatro humores. Parece, de fato, normal que a bílis ígnea engendre o desejo, o sangue aéreo a volúpia, a bílis negra terrosa o temor, e a pituita aquosa a mágoa e a indolência. Ele acrescenta depois que essas quatro disposições engendram na alma quatro hábitos voltados para o corpóreo, que os infelizes, após a morte, levam consigo para os purificar em torno dos quatro elementos. À maneira platônica, para essa purificação, ele distingue no Inferno quatro regiões principais donde se pode ouvir o tumulto e os bramidos do Aqueronte, do Cocito, do Periflégetonte e do Tártaro.
Parece perfeitamente lógico colocar em retorno nos Campos Elísios quatro regiões, isto é, quatro grupos de três signos no Zodíaco, que correspondem aos quatro gêneros de virtudes pelas quais se extirpam os quatro desejos, o que permite à inteligência serena receber a luz celeste. Mas é preciso lembrar que aqueles que pensam que as almas que vivem nas esferas planetárias, no fogo e no ar puro estão no inferno não devem ser contados entre os platônicos. Como, com efeito, colocar essas almas no inferno se estão junto aos bem-aventurados e em corpos tão leves e tão obedientes ao império das almas que nada as desvia da contemplação do divino?
Devemos, portanto, segundo os platônicos, reservar o nome de inferno à única região do universo onde a mistura tumultuária dos elementos produz uma harmonia discordante.
Finalmente, para resumir brevemente a opinião dos teólogos da Antiguidade sobre a condição da alma após a morte, lembrarei o que disse alhures, a saber, que as realidades divinas são as únicas realidades verdadeiras, que todo o resto não passa de uma imagem ou sombra dessas realidades. Por isso os sábios que se dedicam às coisas divinas são particularmente vigilantes. Em contrapartida, os tolos, que buscam outra coisa, são brinquedos de pesadelos, como se dormissem e se, durante esse sono, morrem sem acordar, são atormentados após a morte por visões semelhantes e ainda mais penosas.
E, assim como aquele que durante a vida desejou ardentemente o que é verdadeiro possui após a morte a verdade soberana, do mesmo modo aquele que se apegou ao que é falso é atormentado pelos piores erros, de sorte que o primeiro goza dos verdadeiros bens enquanto o outro é vítima de imagens enganosas. Por isso Cristo, mestre da vida, repete frequentemente este conselho: “Vigiai, vos digo, vigiai para que vosso Mestre não vos encontre dormindo”. E ainda: “Agora levantai-vos e partamos”. O que quer dizer “acordar” senão reconhecer que se sonha no domínio dos sentidos? O que quer dizer “levantar-se e partir” senão elevar-se a Deus pela própria inteligência?
Penso que não se deve omitir uma causa de tormentos, ignorada até por aqueles que dela sofrem, mas capital, e que Platão assinalou no Timeu, no Górgias, na República, e que Orígenes explicou. Deus, ao criar a alma, fundou seu equilíbrio sobre uma espécie de harmonia das partes, das potências e dos movimentos espirituais. Tal equilíbrio é pouco a pouco rompido nos homens intemperantes e injustos e é na maioria das vezes destruído nos condenados. Ora, é inevitável que essa ruptura e essa destruição provoquem na alma uma dor e um sofrimento não negligenciáveis, mesmo que ela ignore sua origem e seu objetivo, do mesmo modo que, se se perturba no corpo o equilíbrio dos espíritos, dos humores e dos membros, o sofrimento se segue necessariamente, ainda que o doente ignore a razão de seu sofrimento.
Os teólogos cristãos não negam isso completamente, mas acrescentam, creio eu, uma pena proveniente do juízo exato da própria alma condenada, porque ela se dará conta de que está privada para sempre da visão divina. Esse é o maior castigo, porque Deus é o fim para o qual nascemos e para o qual tendem todos os nossos desejos e todas as nossas ações. Por isso a sede natural que temos dele é mais ardente que a que impele um homem sedento a beber.
Mas, assim como um homem sob o efeito do ópio, mesmo que morra de sede, não sentirá o aguilhão e o tormento da sede, mas sentirá mais violentamente esse aguilhão e esse tormento, assim que o ópio tiver sido eliminado, do mesmo modo a alma que se embriagou com as águas do Letes, esse rio da matéria, que é o mais afastado de Deus, fica absolutamente insensível ao sentido do divino e não sente os tormentos da sede natural que tem de Deus, mas os sente muito vivamente e sofre muito violentamente quando sua insensibilidade desaparece.
E se, de um modo ou de outro, podemos acreditar nesta vida que estamos muito longe de Deus, no entanto é bastante raro que tenhamos consciência disso, seduzidos que somos pelos encantos da vida, e quando nos damos conta, esperamos voltar logo para nosso Pai. Mas aqui não há nenhum encanto e nenhuma esperança para aliviar esses infelizes, o que pode significar o próprio nome de Aqueronte. O que aumenta sua dor é que sabem estar privados por sua própria culpa de um bem tão grande, por isso não cessam de se indignar contra si mesmos, o que pode significar o nome de Estige.
A isso se acrescenta no Tártaro a morada em habitações ou vis ou horríveis e, enfim, o tormento do corpo humano, o que representa para a sensibilidade o Flegetonte e para a alma o Cocito .
