O homem é a própria alma e a alma é imortal (Ficino)
Ficino, 1594
Como o corpo é composto de matéria e quantidade, e à matéria cabe receber, enquanto à quantidade cabe ser dividida e estendida, e como recepção e divisão são paixões, segue-se que o corpo, por sua própria natureza, está sujeito à paixão e à corrupção. Se uma ação parece ser própria do corpo, não ocorre porque o corpo, em si, age, mas sim porque nele há certa força e qualidade de natureza incorpórea, como o calor no fogo, o frio na água ou o temperamento no corpo humano. São dessas qualidades que derivam as operações dos corpos. O fogo não aquece por suas dimensões, mas porque é quente, e não aquece mais por ser mais extenso, mas sim pelo grau de calor. Assim, se as operações ocorrem por meio de qualidades e forças, e essas não são compostas de matéria e quantidade, ainda que estejam nelas, conclui-se que o padecimento pertence ao corpo, enquanto a ação pertence ao que é imaterial.
Essas forças são instrumentos da ação, mas por si mesmas não bastam para agir, pois não são suficientes para existir. Aquilo que depende de outra coisa não pode sustentar-se por si mesmo. Dessa forma, as qualidades, necessariamente contidas no corpo, são produzidas e dependem de uma substância superior, que não é o corpo nem está nele. Assim, a alma, presente e inserida nos corpos, subsiste por si mesma e confere aos corpos suas qualidades e forças. Através delas, como instrumentos, realiza diversas operações no corpo e por meio do corpo.
Por isso se afirma que o homem gera, alimenta-se, cresce, corre, levanta-se, senta-se, fala, cria obras de arte, sente e entende. E todas essas ações são realizadas pela alma. Portanto, a alma será o verdadeiro homem. Quando dizemos que o homem gera, cresce e se nutre, significa que a alma, como criadora do corpo, gera-o, faz com que cresça e o alimenta. Quando dizemos que o homem se levanta, senta-se e fala, é a alma que movimenta os membros, dobra-os e os faz vibrar. Quando mencionamos correr ou criar algo, é a alma que estende as mãos e governa os pés. Sentir ocorre porque a alma percebe os corpos exteriores pelos sentidos, como por meio de janelas. Compreender ocorre porque a alma, sem auxílio do corpo, alcança a verdade.
Dessa forma, tudo que o homem faz é, na realidade, obra da alma, enquanto o corpo apenas padece. Pois o homem é espírito, e o corpo é sua criação e instrumento. O espírito exerce sua operação principal—o entendimento—sem necessidade de instrumentos físicos, pois compreende as coisas imateriais por si só, enquanto o corpo apenas percebe aquilo que é corpóreo. Sendo assim, se o espírito age independentemente, ele também existe por si mesmo e vive sem o corpo. E porque possui um ser próprio e distinto da matéria, pode ser propriamente chamado de “homem”. Esse nome, atribuído a cada indivíduo ao longo da vida, indica algo permanente e estável. Enquanto o corpo cresce, diminui e muda constantemente, dissolvendo-se e alterando-se por influências externas, a alma permanece a mesma. A busca pela verdade, a vontade do bem e a preservação da memória são provas de sua constância.
Dado isso, seria insensato atribuir o nome “homem” ao corpo, que está em constante mudança, em vez de ao espírito, que é estável. Portanto, quando Aristófanes falou dos homens, referia-se, dentro da tradição platônica, às nossas almas.
