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Da origem do amor (Ficino)

(Ficino, 1594) Quando Orfeu, nas Argonáuticas, seguindo a teologia de Mercúrio Trismegisto, cantou os princípios das coisas na presença de Quíron e dos heróis, colocou o caos antes do mundo e situou o amor no seio desse mesmo caos, antes de Saturno, Júpiter e os demais deuses, com estas palavras: πρεσβύτατον τε καὶ αὐτοτελῆ πολύμητιν Ἔρωτα. Amor é o mais antigo, perfeito em si mesmo e melhor conselheiro. Hesíodo, na Teogonia, e Parmênides, o pitagórico, no livro Da Natureza, e Acusilau, o poeta, concordaram com Orfeu e Mercúrio. Platão, no Timeu, descreveu o caos de forma semelhante e nele colocou o amor. E o mesmo relatou Fedro no Banquete. Os platônicos chamam de caos ao mundo sem forma, ao mundo caos formado. Para eles, há três mundos e, igualmente, existirão três caos. O primeiro de todos é Deus, autor dos universos, a quem chamamos de Bem em si mesmo. Este cria, como Platão afirma, primeiro a mente angélica, depois a alma deste mundo e, por fim, o corpo do mundo. A este mesmo sumo Deus não o chamamos de mundo, porque mundo significa ornamento, composto de muitas coisas, e verdadeiramente Ele deve ser absolutamente simples, mas afirmamos que é o princípio e o fim de todas as coisas. Assim, a mente angélica é o primeiro mundo feito por Deus. O segundo, a alma do corpo universal. O terceiro, todo este artifício que vemos. Certamente, nesses três mundos consideram-se também três caos. No princípio, Deus cria a substância dessa mente, que chamamos de essência. Esta, no primeiro momento de sua criação, é informe e obscura, mas, porque nasceu de Deus, por um certo desejo inato, volta-se para Deus, seu princípio. Voltada para Deus, é iluminada por seu raio. E é pelo resplendor desse raio que seu desejo se acende. E, uma vez aceso, une-se inteiramente a Deus, e, ao unir-se, é formada, pois Deus, que tudo pode, imprime na mente que a Ele se une a natureza de todas as coisas que devem ser criadas. Nela, então, se pintam, por assim dizer, de modo espiritual, todas as coisas que percebemos nos corpos. Ali se geram as esferas dos céus e dos elementos, as estrelas, a natureza dos vapores e as formas das pedras, dos metais, das plantas e dos animais. Desse modo, não duvidamos que as formas de todas as coisas, concebidas com a ajuda de Deus nessa mente superior, são as ideias. E à forma e ideia do céu, frequentemente a chamamos de deus céu, e à forma do primeiro planeta, Saturno, do segundo, Júpiter, e igualmente com os planetas que seguem. E assim, à ideia do elemento fogo, chamamos Vulcano; à do ar, Juno; à da água, Netuno; e à da terra, Plutão. Por isso, todos os deuses atribuídos a certas partes do mundo inferior são as ideias dessas partes reunidas na mente. Mas a essa concepção das ideias, perfeita por ser formada por Deus, precedeu o aproximar-se da mente de Deus. A este, precedeu o incêndio de seu desejo; a este, a infusão do raio; e a esta, antes, a primeira inclinação de seu desejo; e a esta, a essência da mente informe. Finalmente, afirmamos que essa essência não formada é o caos. Sua primeira conversão a Deus, o nascimento do amor. A infusão do raio, o alimento do amor. E o incêndio que se segue, chamamos de crescimento do amor. O aproximar-se, o ímpeto do amor. Sua formação, a perfeição do amor. E ao conjunto de todas as formas e ideias, chamamos de mundo, isto é, mundus em latim, κόσμον em grego, ou seja, ornamento. A graça desse mundo e desse ornamento é a beleza à qual o amor, desde o momento em que nasceu, atraiu e conduziu de uma mente antes disforme a uma mente bela. Tal é a condição do amor: que arrebata as coisas para a beleza e une o disforme ao belo. Quem duvidará, portanto, que o amor não segue imediatamente ao caos e precede o mundo e todos os deuses que estão distribuídos nas partes do mundo? Pois aquele desejo da mente existe antes de sua formação, e na mente formada nascem os deuses e o mundo. Por isso, com razão Orfeu o chamou de o mais antigo. E ainda, perfeito em si mesmo, o que significa quase que ele mesmo se aperfeiçoa. Pois parece que aquele primeiro instinto da mente, por sua natureza, toma sua perfeição de Deus e a transmite à mente que daí se forma, e aos deuses que daí se geram. Além disso, chamou-o de o melhor conselheiro. E justamente, pois toda a sabedoria da qual deriva propriamente o conselho é dada à mente porque, ao voltar-se para Deus por amor, ela mesma resplandece por seu próprio brilho. A mente dirige-se a Deus do mesmo modo que o olho à luz do sol. Em terceiro lugar, na luz do sol, compreende as cores e as figuras das coisas. Por isso, o olho, primeiro obscuro e informe, à semelhança do caos, quando olha, ama a luz, e, ao olhar, é alcançado pelo raio, e, ao receber o raio, é formado pelas cores e figuras das coisas. E assim como a mente, desde o momento em que nasce, e informe, volta-se para Deus e ali se forma, igualmente também a alma do mundo volta-se para a mente e para Deus, de onde foi gerada, e, embora antes fosse informe e caos, dirigida com amor para a mente e aceitando as formas desta, faz-se mundo. E igualmente a matéria deste mundo, embora a princípio não fosse mais que um caos informe, sem ornamento de formas, pelo mesmo amor inato dirige-se à alma e a ela se oferece, e por esse amor conciliante recebe da alma todas as formas que se veem no mundo, e assim, nascida do caos, fez-se mundo, ornamento. Há, então, três caos e três mundos. E, em suma, em todos, o amor acompanha o caos, precede o mundo, desperta da inércia, ilumina as trevas, dá vida às coisas mortas, dá forma ao informe, aperfeiçoa as imperfeições. Depois desses elogios, mal se pode pensar ou dizer outros maiores.

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