Eliade – Humanismo, neoplatonismo e hermetismo durante o Renascimento

Humanismo, neoplatonismo e hermetismo durante o Renascimento.
Excertos de Mircea Eliade

Cosme de Médicis confiara ao grande humanista florentino Marsílio Ficino (1433-1499) a tradução de manuscritos de Platão e de Plotino que ele havia reunido ao longo de numerosos anos. No entanto, na altura de 1460, Cosme comprou um manuscrito do Corpus hermeticum e solicitou a Ficino que o traduzisse imediatamente para o latim. Nessa época, Ficino não tinha ainda iniciado a sua tradução de Platão, ou pelo menos abandonou temporariamente os Diálogos e dedicou-se intensamente à tradução dos tratados herméticos. Em 1463, um ano antes da morte de Cosme, essas traduções estavam terminadas. O Corpus hermeticum foi assim o primeiro texto grego traduzido e publicado por Marsílio Ficino1. Isso demonstra o prestígio de Hermes Trismegisto, considerado como autor dos tratados herméticos.

As traduções latinas de Ficino — sobretudo o Corpus hermeticum, Platão e Plotino — tiveram um papel importante na história religiosa do Renascimento: foram responsáveis pelo triunfo do neoplatonismo em Florença e suscitaram um interesse apaixonado pelo hermetismo em quase toda a Europa. Os primeiros humanistas italianos — desde Petrarca (1304-1374) até Lourenço Valia (c. 1405-1457) — já haviam inaugurado uma nova orientação religiosa ao rejeitarem a teologia escolástica e voltarem-se para os Padres da Igreja. Acreditavam os humanistas que, como cristãos leigos e bons classicistas, podiam estudar e compreender melhor do que o clero as relações entre, de um lado, o cristianismo e, de outro, as concepções pré-cristãs relativas à divindade e à natureza humana. Como observou Charles Trinkaus, essa nova valorização do Homo Triumphans não é necessariamente de origem paga, inspirando-se antes na tradição patrística.2.

Com o neoplatonismo popularizado por Ficino, Pico delia Mirandola (1463-1494) e Egidio de Viterbo (1469-1532), a exaltação da condição humana adquire uma nova dimensão, mas sem com isso renunciar ao contexto cristão. Ao criar o mundo, Deus concedeu ao homem o domínio da Terra, e era “através das ações do homem como deus sobre a terra que a obra criadora da história e da civilização devia ser efetuada” (Ibid., p. XXII). Contudo, a apoteose do homem, tendência característica dos humanistas, passa agora a inspirar-se cada vez mais no neoplatonismo paracristão e no hermetismo.

Evidentemente, Marsílio Ficino e Pico della Mirandola não tinham dúvida quanto à ortodoxia da sua fé. Já no século II, o apologista Lactancio considerava Hermes Trismegisto como um sábio inspirado por Deus, e interpretava certas profecias herméticas como tendo sido cumpridas pelo nascimento de Jesus Cristo. Marsílio Ficino reafirmava essa harmonia entre, de um lado, o hermetismo e a magia hermética3 e, de outro, o cristianismo. Pico della Mirandola considerava que Magia e Cabala eram confirmações da divindade de Cristo4. A crença universal numa venerável prisca theologia5) e nos famosos “velhos teólogos” — Zoroastro, Moisés, Hermes Trismegisto, Davi, Orfeu, Pitágoras, Platão — conhece agora uma voga excepcional.

Pode-se identificar nesse fenômeno a insatisfação profunda deixada pela escolástica e pelas concepções medievais do homem e do universo, uma reação contra o que se poderia chamar de cristianismo “provinciano”, vale dizer, puramente ocidental, bem como a aspiração a uma religião universalista, transistórica, “primordial”. Pico aprende o hebraico para iniciar-se na Cabala, revelação que, segundo ele, precede e explica o Antigo Testamento. O papa Alexandre VI manda pintar, no Vaticano, um afresco repleto de imagens e de símbolos herméticos, ou seja, “egípcios”. O Egito antigo, a Pérsia mítica de Zoroastro, a “doutrina secreta” de Orfeu, revelam “mistérios” que ultrapassam as fronteiras do judeu-cristianismo e do mundo clássico recentemente redescoberto pelos humanistas. Trata-se, na verdade, da certeza de que se podem reencontrar as revelações primordiais do Egito e da Ásia, e de que é possível demonstrar a sua solidariedade e a sua fonte única.6

Durante cerca de dois séculos, o hermetismo constituiu uma obsessão para inúmeros teólogos e filósofos, crentes e incréus. Se Giordano Bruno (1548-1600) acolhe com tanto entusiasmo as descobertas de Copérnico, é que ele pensava que o heliocentrismo tinha uma profunda significação mágica e religiosa. Em sua estada na Inglaterra, Bruno profetizou o retorno iminente da religião mágica dos antigos egípcios tal como era descrita no Asclepius. Giordano Bruno sentia-se superior a Copérnico porque, enquanto este não compreendia a sua própria teoria senão como matemático, Bruno, por sua vez, podia interpretar o esquema coperniciano como o hieróglifo dos mistérios divinos7.

Giordano Bruno, porém, colimava um objetivo diferente: ele havia identificado Hermes com a religião egípcia, considerada como a mais antiga, e portanto assentava o seu universalismo religioso no papel da magia egípcia. Ao contrário, muitos autores do século XVI hesitavam em recorrer à magia hermética, agora proclamada como heresia. É o caso de Lefèvre d’Etaples (1460-1537), que havia introduzido o hermetismo na França: ele separava o grosso do Corpus hermeticum do tratado Asclepius. O neoplatônico Symphorien Champier (1472-1539) tentou mesmo demonstrar que o autor dos trechos mágicos do Asclepius não era Hermes, mas Apuleio8. No século XVI, tanto na França como em outros países da Europa, o valor exemplar do hermetismo derivava, em primeiro lugar e sobretudo, do seu universalismo religioso, suscetível de restaurar a paz e a concórdia. Um autor protestante, Philippe de Mornay, procura no hermetismo um meio de escapar aos horrores das guerras religiosas. Em sua obra Da Verdade da Religião Cristã (1581), lembra Mornay que, segundo Hermes, “Deus é uno [… ] e só a Ele cabe o nome de Pai e de Bom […]. Só Ele é tudo; sem Nome, e melhor que todo e qualquer Nome”9. Como escreve J. Dagens, “essa influência do hermetismo atingiu protestantes e católicos, favorecendo, em uns e em outros, as tendências mais irênicas”10. A venerável religião revelada por Hermes e compartilhada no início por toda a humanidade poderia, em nossos dias, restabelecer a paz universal e a harmonia entre os diversos credos. No centro dessa revelação encontra-se a “divindade” do homem, o microcosmo que é a síntese de toda a criação. “O microcosmo é o objetivo último do macrocosmo, ao passo que o macrocosmo é a morada do microcosmo […]. Macrocosmo e microcosmo estão de tal forma ligados entre si, que um está sempre presente no outro.”11

A correspondência microcosmo-macrocosmo era conhecida na China, na Índia antiga e na Grécia. Mas é sobretudo em Paracelso e seus discípulos que ela readquiriu novo vigor12. O homem torna possível a comunicação entre a região celeste e o mundo sublunar. No século XVI, o interesse pela magia naturalis representa um novo esforço no sentido de aproximar a Natureza e a religião. O estudo da Natureza constituía de fato uma tentativa para melhor compreender a Deus. Veremos mais adiante o grandioso desenvolvimento dessa concepção.


  1. Frances A. Yates, Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, pp. 12-13. Até essa época, somente um tratado hermético, o Asclepius, era acessível em latim. 

  2. Cf. Charles Trinkaus, “In Our Image and Likeness”, I, pp. XIX s., 41 s. (Petrarca), 150 s. (Lourenço Valia); ver sobretudo os textos reproduzidos nas pp. 341 s. e 381 s. A realização plena da personalidade nem sempre implica um ideal tomado de empréstimo ao paganismo; explica-se principalmente pela renovação de uma teologia da graça; cf. ibid.t pp. XX, 46 s. 

  3. Ver, inter alia, D.P. Walker, Spiritual and Demonic Magic. From Ficino to Campanella, pp. 30 s 

  4. Entre as teses de Pico della Mirandola condenadas por Inocêncio VII figura a célebre afirmação: Nutta est scientia que non magie certificet de divinitate Christi quam magia et cabala. Cf. Yates, Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, pp. 84 s. 

  5. Cf. D.P. Walker, The Ancient Theology, especialmente pp. 22 s. (“Orpheus the Theologian” 

  6. Encontramos o mesmo entusiasmo e a mesma esperança, ainda que em proporções mais modestas, no século XIX, após a “descoberta” do sânscrito e da “primordialidade” dos Vedas e dos Upanixades. 

  7. Ver Yates, Giordano Bruno, pp. 154 s. e passim. Um helenista erudito, Isaac Casaubon, demonstrou em 1614 que o Corpus hermeticum era uma coleção de textos de época bastante recente — não anteriores ao segundo ou terceiro século antes de nossa era (cf. § 209). Mas o prestígio fabuloso dos “mistérios egípcios” continuou a visitar a imaginação da inteligentsia européia sob uma nova forma: o “mistério dos hieróglifos”. 

  8. Yates, op. cit., pp. 172 s. Sobre o hermetismo no século XVI. na França, ver também Walker, The Ancient Theology, capítulo III. 

  9. Citado por Yates, op. cit, p. 177. Ver também Walker, op. cit., pp. 31-33, 64-67 etc. O católico Francesco Patrizi acreditava que o estudo do Corpus hermeticum poderia persuadir os protestantes alemães a retornarem ao seio da Igreja; Yates, pp. 182 s. 

  10. “Hermétisme et cabale en France, de Lefèvre d’Etaples à Bossuet”, p. 8; Yates, op. cit., p. 180. 

  11. Charles de Bouelles, citado por E. Garin, “Note sul’Hermetismo dei Rinascimento”, p. 14. 

  12. Cf., vnter alia, Alex Wayman, “The Human Body as Microcosm in India, Greek Cosmology and Sixteenth Century Europe”; Allen G. Debus, Man and Nature in the Renaissance, pp. 12 s., 26 s.