Eros e Psique

MITOLOGIA GREGA — EROS E PSIQUE

VIDE: THOMAS TAYLOR : THE FABLE OF CUPID AND PSYCHE

Excertos da versão alemã integral de A. Schaeffer, trad. por Zilda Hutchinson Schild

Em certa cidade, havia um rei e uma rainha que tinham três filhas dotadas de extraordinária beleza. Ainda que fossem muito belas, as mais velhas podiam ser celebradas satisfatoriamente pelos elogios dos homens. Mas não havia linguagem humana que pudesse descrever ou pintar a primorosa e majestosa formosura da filha caçula. Atraídos finalmente pelos boatos sobre essa inusitada beleza, muitos burgueses e estrangeiros ricos afluíram apressadamente à região: adoraram-na como se a moça fosse a própria Vênus, atordoados de admiração pelo fato de ela ser tão arrebatadoramente bela. Ao mesmo tempo, aproximavam da boca o dedo indicador da mão direita curvado sobre o polegar, com devotada adoração.

E logo espalhou-se pelas cidades vizinhas e por todas as regiões limítrofes a fama de que a deusa, nascida das profundezas muito azuis do mar, vestida com o orvalho das espumas da maré cheia, concedia a graça de sua divina presença por todos os lugares, andando no meio da multidão; dizia-se que, com certeza, os borrifos da espuma celeste haviam dado à luz um novo rebento, não nos mares mas em terra firme; nascera uma nova Afrodite repleta de florescência virginal.

Essa ilusão tornava-se a cada dia mais monstruosa; o boato, muitas vezes ampliado, já atravessara as ilhas próximas e vários países, chegando à maioria das províncias.

Logo inumeráveis mortais empreenderam longas viagens atravessando as terríveis correntezas marítimas rumo ao glorioso símbolo do século. Ninguém mais viajava a Pafo, a Cnido ou nem mesmo a Citer a fim de contemplar a deusa Vênus: os sacrifícios em sua honra foram adiados, os templos esquecidos, os bancos abandonados, as cerimônias negligenciadas; os quadros deixaram de ser emoldurados e os altares permaneceram vazios, recobertos de cinzas frias. Sob os traços humanos da jovem, venerava-se o poder imenso da deusa e, durante o seu passeio matinal, elogiava-se o nome de Vênus como se a moça fosse a deusa em pessoa; ofereciam-lhe sacrifícios e alimentos no intuito de obter graças; e as grandes multidões cobriam as vielas por onde ela iria passar de flores soltas e de ramalhetes.

A imoderada transferência de honrarias celestiais para o culto de uma mortal aguçou intensamente os sentidos da verdadeira deusa Vênus que, impaciente, balançando a cabeça de indignação, resmungou em voz baixa, dizendo a si mesma:

“Vê, Grande Mãe da Natureza, origem de todos os elementos; observa como tu, que és a alma de todo o universo, estás dividindo as honras da majestade com uma simples mortal e como o teu nome, nascido no céu, está sendo profanado pela imundície humana! Sinceramente, acaso terás de sofrer, vítima do desconhecimento geral que faz os homens venerarem essa moça que é teu retrato vivo? Acaso terá sido em vão que aquele pastor, em cuja justiça e lealdade Júpiter confiou, te preferisse a todas aquelas Grandes Deusas? (Páris) No entanto, seja lá quem for essa menina, não vai apoderar-se das honras que me são devidas: logo a farei arrepender-se de sua ilícita beleza!”

E, imediatamente, chamou seu filho, esse moleque alado e incrivelmente audacioso, de maus hábitos e que com completo e evidente desprezo pela disciplina, anda armado com chamas e dardos pelas casas alheias durante a noite, no intuito de desmanchar casamentos e que, impune, comete as mais vergonhosas ações, além de não fazer nada de bom. Embora por natureza ele já seja malcriado, Vênus o atiça ainda mais com palavras, levando-o até aquela cidade para apontar-lhe Psique — pois esse era o nome da moça — em pessoa, depois de lhe contar tudo sobre o confronto de belezas. Disse-lhe, ardente e borbulhante de indignação:

— Pelos laços do amor materno, pelas doces feridas do teu arco, pelas queimaduras eróticas de tuas chamas, vinga-me, mas que seja uma vingança perfeita. Enfrenta com galhardia essa indomável beldade; e uma única coisa faze com vontade: essa donzela terá de apaixonar-se perdidamente pelo mais horrendo dos homens, cujo destino será a perda da dignidade e da herança; deve perder inclusive a incolumidade do corpo, e descer tão baixo que em todo o mundo não encontre quem queira partilhar do seu sofrimento!

Depois de dizer isso, e de apertar longamente o filho ao coração cobrindo-o de beijos ávidos, ela dirigiu-se à praia da costa mais próxima. Pisando sobre a espuma da orla das ondas revoltas, com pés de solas rosadas, Vênus desceu até o bojo macio do mar; bastava manifestar algum desejo e logo o oceano obediente não tardava em cumpri-lo, como se a deusa já o tivesse formulado anteriormente; e eis que surgiam as filhas de Nereu, cantando em coro, e o áspero Portuno com suas cerradas barbas azuladas, e a pesada Salácia com os seios repletos de peixes, além do pequeno Palêmon, o condutor dos delfins. Logo vieram os bandos de tritões, que atravessam alegremente os mares; um deles soprou a concha, outro protegeu a deusa com um guarda-chuva de seda; outro ainda trouxe-lhe um espelho, para que Vênus pudesse nele se mirar; os outros nadaram como parelhas de cavalos sob sua carruagem. Foi acompanhada por tal séquito que Vênus partiu para o mar.

Enquanto isso, Psique não colhia nenhum fruto da glória da sua inusitada beleza. Todos a admiravam, todos a louvavam, mas ninguém, nem rei nem príncipe, nem mesmo um homem da plebe aproximava-se dela para pedi-la em casamento. Os homens admiravam de fato a sua aparência divina, mas com a admiração que se tem por um belo retrato. As duas irmãs mais velhas, cuja beleza não fora cantada por nenhum povo, há muito haviam sido dadas em casamento a príncipes estrangeiros. Psique, no entanto, lamenta sua solidão, sem marido e sem amor, fisicamente doente e com a alma dilacerada; ela odeia em si mesma a beleza que constitui o encantamento de nações inteiras. Devido a essa situação, o rei, infeliz por ver a filha tão triste, desconfiando do ódio e do rancor dos céus por causa da beleza da moça e temeroso da ira dos deuses, procura o antiquíssimo oráculo de Apolo de Mileto, ao qual faz suas súplicas e oferece sacrifícios: pede que tão poderosa divindade arranje um casamento para a princesa rejeitada. A resposta do deus mântico foi dada em forma de versos:

Leva, ó rei, tua filha para o rochedo mais alto do monte,
E a expõe suntuosamente ataviada para as núpcias mortais,
Não esperes para genro um homem de estirpe mortal,
Mas um monstro cruel e feroz, cercado por cobras;
Ele voa pelos ares e, viperino, não poupa ninguém.
Destrói tudo, pois sabe como fazê-lo, com ferro e fogo,
Faz tremer o próprio Júpiter e aterroriza os imortais,
Pois também eles estremecem de horror diante das trevas do Estige.

Assim que o outrora feliz rei ouviu o prognóstico, voltou lenta e tristemente para casa, contando à esposa as instruções da infeliz previsão. A casa real ficou de luto por vários dias: só se ouviam choros e lamentações.

Logo se aproximou o dia da execução do cruel oráculo. E iniciaram-se os preparativos para as núpcias de morte da mais infeliz das donzelas. A chama nupcial já tremulava débil nas tochas obstruídas por escura fuligem e cinzas negras; o som da flauta nupcial foi substituído pelos acordes pungentes, o hino alegre terminava num verdadeiro gemido de lamentação; a noiva enxugava as lágrimas no véu do vestido. Devido ao seu triste destino, toda a cidade a velava e, visto que o ânimo geral era de perturbação, foram decretadas férias judiciais.

Somente a necessidade de obedecer às ordens dos céus faz com que Psique se sacrifique, cumprindo o castigo que lhe fora imposto. Depois de se encerrarem as festividades das núpcias, Psique, desolada e triste, em prantos e devidamente ataviada com a indumentária fúnebre, teria de ser levada ao alto do rochedo para a sua união com o monstro. Conduzida pela multidão, Psique não é seguida por uma alegre procissão de núpcias, mas acompanhada pelo cortejo fúnebre de suas exéquias.

Aos pais, perturbados com a grande desgraça da filha, e hesitantes em executar o destino nefando, a própria Psique exorta com as seguintes palavras:

— Por que amargurais vossa velhice chorando sem parar? Por que aniquilais vossos espíritos, que é muito mais o meu, com esse pranto contínuo? Por que desfigurais vossos rostos, para mim tão nobres, com lágrimas inúteis? Por que destruís em vossos olhos a luz dos meus? Por que descabelais os cabelos grisalhos? Essas são as luminosas recompensas pela minha inusitada beleza. Tarde demais vos sentis atingidos pelo toque mortal da inveja pública que corrói. Quando nações e povos me tributaram honras divinas, e a uma só voz me consagraram como a nova Vênus, então deveríeis ter padecido, chorado e me lamentado como morta. Já sei que ficarei totalmente só, por terem me confundido com a deusa. Mas levai-me logo para o alto do rochedo como foi prognosticado. Tenho pressa, estou ansiosa para consumar logo essa infeliz união, tenho pressa de contemplar meu nobre esposo. Por que deveria mantê-lo à distância, por que não fugir da sua presença? Por que evitar aquele que nasceu para destruir todo o mundo?

Tendo dito isso, a virgem calou-se e misturou-se às pessoas do séquito com o passo muito mais enérgico. Foram até o alto do íngreme rochedo, onde abandonaram a jovem às núpcias de morte com o monstro. A tocha nupcial ficou lá, mas apagada a chama pelas lágrimas da moça. A multidão cabisbaixa preparou-se para voltar à cidade. E os pobres pais, acabrunhados pela desgraça, trancaram-se na escuridão de sua casa, pois já se aproximava a noite.

No entanto, Psique tremia de medo, sozinha no alto do rochedo; surpreendentemente, sentiu-se transportada pelo brando vento Zéfiro, que a levou docemente, agitando suas vestes diáfanas, inflando o seu fofo vestido. Por sobre os altos penhascos conduziu-a o vento e colocou-a suavemente sobre a relva macia do vale no sopé da montanha.

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