MITOLOGIA — EROS E PSIQUE
CAPÍTULO 10
Foi então que Psique compreendeu que seu fim estava próximo. Não havia mais enigmas, e enviavam-na sem mais disfarces para a própria morte. Como não? Pois estavam mandando que fosse voluntariamente ao Tártaro e que se misturasse às almas dos mortos. Sem mais delongas, ela dirigiu-se a uma grande torre muito alta, a fim de precipitar-se de lá de cima: este, pensou, seria o atalho mais curto para chegar mais depressa ao fundo do Hades. Mas a torre, de repente, resolveu falar, dizendo:
— Por que, pobre infeliz, queres te matar constantemente? E por que recuas ante essa prova derradeira e diante desse novo perigo? Quando o espirito se tiver separado do teu corpo definitivamente, é claro que chegarás ao mundo dos mortos, mas de lá não poderás nunca mais voltar. Ouve-me, por favor! Não muito longe daqui, na nobre Acaia, existe a cidade de Lacônia; nas proximidades fica o cabo Tênaro, oculto nessa região na qual não existem caminhos. Ali fica a entrada do Hades e através de portões sonolentos verás o caminho sem caminho ao qual terás de te entregar, mal passes pela porta. E logo chegarás diretamente ao Palácio do Orco. Contudo, não deves te aventurar nessas regiões de trevas sem levar em cada mão dois pedaços de bolo adoçado com hidromel e na boca duas moedas. Quando já tiveres percorrido parte do caminho que traz a morte, verás um asno coxo que puxa uma carrocinha de lenha conduzida por um condutor também coxo. Este te pedirá para pegar algumas lascas de madeira caída ao chão; mas prossegue teu caminho sem lhe responderes nada. Logo chegarás então ao rio da morte. Serás abordada por Caronte, que te proporá a travessia do rio infernal em sua barca, mediante o pagamento da passagem. Portanto, já vês que também junto aos mortos existe a cobiça, e nem Caronte, nem o pai Plutão, que é um deus tão poderoso, fazem coisa alguma de graça; o pobre do agonizante precisa ter uma moeda e, se não tiver dinheiro à mão, ninguém permite que ele morra. A esse velho asqueroso darás como pagamento da passagem uma das moedas que trazes na boca, mas faze com que ele mesmo a pegue. Mais uma coisa: quando estiveres em meio à travessia dos rios infernais, um velho erguerá do fundo das águas as mãos podres e implorará para que o puxes para bordo; não te deixes levar, porém, pela tua compaixão ilícita. Do outro lado do rio, depois que tiveres andado um bom trecho de caminho, encontrarás umas velhas fiandeiras que te pedirão ajuda, mas não deves atendê-las pois não tens permissão para tocá-las. Tudo isso te aguarda e muito mais, e tudo são instruções de Vênus para que deixes cair um dos bolos que levas nas mãos. Não aches que a perda dos bolos não seja importante! Pois, se perderes um só não mais verás a luz. Pois um enorme cão com uma cabeça bastante larga e grande, monstruoso e horripilante, late com toda a força dos pulmões para os mortos: ele não lhes pode fazer mal e monta guarda, tentando assustá-los inutilmente, diante da casa vazia de Plutão, limiar do sombrio átrio de Perséfone. Com o pedacinho de bolo, passarás facilmente por ele e chegarás diretamente até Perséfone, que te receberá com toda a gentileza e te convidará a sentar e a participar de um lauto banquete. Mas deves sentar-te no chão e pedir apenas um pedaço de pão preto, que aceitarás. Dize em seguida por que a procuraste, e depois que receberes o que ela te oferecer, compra a tua passagem de saída com o que restou do bolo, entregando-o ao cão. Dá ao cobiçoso barqueiro a moeda que guardaste e, depois que tiveres atravessado o rio regressando ao lugar de origem, voltarás acompanhada pelo coro dos astros. Mas em nenhuma hipótese deves abrir nem olhar para o conteúdo misterioso da beleza imortal contido na caixinha.
Desta forma, a torre dá a Psique o presente da sua clarividência. Psique, sem demora, põe-se a caminho do Tênaro, e depois que as moedas e os pedaços de bolo foram corretamente aceitos, ela seguiu para o reino dos mortos. Depois de passar pelo burriqueiro coxo sem nada dizer e depois de ter pago a passagem para embarcar e chegar à outra margem, não ligou para o morto que boiava nas águas do rio, não atendeu às súplicas das fiandeiras e, logo depois, aplacou a ira do cão com o bolo que trazia numa das mãos. Conseguiu assim entrar na casa de Perséfone. Sem aceitar o assento macio nem a lauta refeição, sentou-se no chão comendo seu pedaço de pão. Disse a Perséfone o que Vênus a encarregara de dizer, recebendo em seguida a caixinha cheia e fechada. Depois de tornar a desarmar o cão com o segundo pedaço de bolo e de dar a última moeda ao barqueiro, ficou bem feliz de voltar pelo caminho que já percorrera. No retorno do mundo das trevas, e já em plena luz, com pressa de terminar logo a execução de sua tarefa, seu espírito foi, no entanto, assaltado por grande curiosidade.
E então disse para si mesma: “Sou uma tola mensageira que carrega a beleza imortal e nem sequer peguei um pouquinho para mim a fim de conquistar meu lindíssimo amante.” E ao dizer isso, abriu a caixinha. Mas nada do que era esperado esta continha, nem sequer a beleza imortal, mas o sono estfgio espalhando-se por toda a volta; uma vez liberto, quando ela abriu a tampa da caixinha, ele se apoderou como uma névoa de todos os membros de Psique, prostrando-a no meio do caminho, imóvel como se estivesse morta.
Contudo, Eros, já curado do ferimento produzido que cicatrizara, e louco de saudades da sua Psique, escapuliu pela janela do quarto que lhe servia de cárcere e, num vôo rápido, graças ao longo descanso a que submetera suas asas, aproximou-se nervoso da sua Psique. Cuidadosamente, colocou o sono letárgico de volta à caixinha e despertou a adormecida esposa com um leve toque da ponta de uma de suas flechas.
— Vê — repreendeu-a ele — aonde tua curiosidade quase te levou? No entanto, cumpre a missão de que minha mãe te incumbiu com toda a tranquilidade e deixa o resto por minha conta.
Com essas palavras, entregou a Psique a caixinha, presente de Perséfone para Vênus, e levantou vôo com um movimento ágil de suas asas.
Eros, tão apaixonado como nunca pela sua Psique, teme contudo a ira materna; portanto, dirige-se imediatamente ao velho “barril-zinho de vinho”, vai diretamente à abertura do céu e pede, expondo a causa, que o grande Júpiter seja o seu advogado. Este belisca a bochecha de Eros e, depois de beijá-la, lhe diz:
— Tu, Senhor Filho, que nunca me homenageaste com a honra que todos os deuses me conferem, mas que feriste bastante este peito no qual são organizadas as leis dos elementos e a revolução dos astros; tu que, através dos inúmeros casos ilícitos de amor mundano, me desrespeitaste e atentaste contra as leis, até mesmo contra as leis julianas relativas ao adultério, na medida em que transformaste porcamente minhas alegres feições em cobras, em fogo, em animais selvagens, em pássaros e rebanhos de pastagens; mas apesar de tudo isso, levando em conta minha ternura e pelo fato de ter-te criado com as próprias mãos, te concederei tudo o que pediste; mas quando uma menina mortal se destacar pela beleza, terás de me prestar um favor para recompensar o que agora te dou.
Tendo falado, Júpiter ordenou que Mercúrio convocasse todos os deuses para uma assembleia: quem ousasse desobedecer, ficando longe do círculo celestial, seria castigado, tendo de pagar dez mil moedas. Com medo desse castigo, logo o local da reunião ficou repleto de deuses e, sentado no seu trono, Júpiter fez a seguinte exposição:
— Deuses, vós que tendes os nomes inscritos nos arquivos das musas, conheceis de fato este jovem que eu mesmo eduquei. Julgo que convém refrear para sempre as suas desregradas paixões. Basta de ouvir falar de seus escândalos diários no mundo inteiro a respeito de seus adultérios e devassidões. É chegado o momento de tirar-lhe todas as oportunidades de praticar a luxúria e aprisionar-lhe o temperamento lascivo nos laços do himeneu. Ele escolheu uma donzela, e roubou-lhe a virgindade. Que ele fique com ela, e ela o conserve para sempre, que ele tenha Psique em seus braços por toda a eternidade.
E virando o rosto para Vênus, disse:
— E quanto a ti, filha, não te perturbes com nada e não temas este casamento celebrado entre um deus e uma mortal. Farei com que tenham um casamento legítimo e de acordo com o direito civil do Olimpo. — E, imediatamente, ordenou que Mercúrio raptasse Psique da terra e a trouxesse para o céu. Indo-lhe ao encontro com uma taça de ambrosia, a bebida dos imortais, disse-lhe:
— Bebe, Psique, e sê imortal. Eros jamais abandonará os teus braços, porquanto vosso casamento será perfeito.
Em seguida foi servido um esplêndido banquete de núpcias. No trono mais elevado, ficaram Eros com sua esposa Psique no colo. E Júpiter com a sua Hera e, depois, segundo a ordem hierárquica, os demais deuses. Muita ambrosia foi servida pelo jovem camponês Baco, deus do vinho. A comida foi preparada por Hefesto; as ninfas cobriram tudo com rosas e outras flores, enquanto as Graças espargiram bálsamos perfumados e as Musas fizeram ouvir seus cantos. Apolo cantou acompanhado à cítara, Vênus dançou maravilhosa e ritmadamente ao som da música. A cena toda parecia ter sido organizada — as Musas cantavam em coro, ou sopravam as flautas; um sátiro e um Pã tocavam suas flautas mágicas.
Dessa forma Eros casou-se com Psique segundo o ritual do Olimpo. No momento apropriado, nasceu-lhes uma filha, Volúpia.