Pitágoras nada escreveu; o que tanto mais nos solicita a que sobre ele escrevamos nós, sempre com o perigo à vista de tomar a «sombra» pelo «filósofo». No estado atual dos nossos conhecimentos, e dos preceitos, ou antes, dos preconceitos mais ou menos ocultos que marcaram o rumo da pesquisa, parece desesperada a empresa de situar o filósofo na linha que tem início em Anaximandro e sem esforço se prolonga até Xenófanes, para terminar em Platão. No entanto, apesar de nascido em Samo, posto que já em adulta idade e em grau de amadurecido pensamento, demandou as colônias ocidentais, para aí fundar a sua escola, mais verosímil do que provável se torna a hipótese de uma influência de Pitágoras sobre Parmênides, mais direta que a de Xenófanes, por muito que a historiografia filosófica da Antiguidade insista na pretensão de que foi este o primeiros dos Eleatas. As últimas linhas do parágrafo precedente mostraram até que ponto nos conduz, e onde é forçoso que se detenha, um rastreamento do eleatismo de Xenófanes. Em todo o caso, é certo que não há sorte de «prestidigitação» lógica ou paralógica que converta o Deus-Uno no frg. 23 no Ser de Parmênides; mas como também não vemos que ponte possa ligá-lo diretamente ao Indiferenciado de Anaximandro, se não quisermos renunciar a alguma mediação histórica, só Pitágoras nos resta, como último recurso. A sombra de Pitágoras prolonga-se pelos dez ou onze séculos que vão da insegura data do seu nascimento até ao convencional início da Idade Média, e ao longo de todo esse milênio, a única verdade persistente é a da Lenda Pitagórica, circunscrita a dois pontos, cuja historicidade reúne os sufrágios da maioria dos pesquisadores responsáveis: o primeiro está no centro de uma aritmologia geométrica e física, ou de uma física e de uma geometria aritmológica; o segundo, resume-se no teorema, com todos os seus corolários, expressando, pela primeira vez, no mundo clássico, o que em termos de cultura moderna, se poderia designar por «dualismo psicofísico».
Eudoro de Sousa: Pitágoras
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