Não nos move, nem de leve, o intuito de escrever uma história, ainda que parcelar, da filosofia grega. Mas, a fim de restabelecer o paralelismo (ou, talvez, a convergência) da codificação mítica e da codificação lógica do mistério do horizonte, que, vê-lo-emos em breve, Parmênides revelou o quanto pôde, há pelo menos dois nomes que não devem ser omitidos, se quisermos evitar o maior número de parênteses incômodos ou de veladas alusões: Xenófanes e Pitágoras. O motivo porque não aduzimos Heráclito não se explica em poucas palavras; deixemo-lo para uma oportunidade que, decerto, não deixará de se apresentar, e, assim o cremos, em carácter de urgência. No plano abstrato de um pensamento que todo o positivismo residual e ainda atuante na nossa cultura preferiria reconhecer como exclusivamente teórico e racional, e na linha que vai de Anaximandro a Parmênides, Xenófanes e Pitágoras representam-se pelos dois pontos em que irrompe com mais vivo esplendor o momento religioso de todo o filosofar. Que a presença dele não cessa, embora muitas vezes se oculte sob a máscara da oposição ao formalismo institucional, à rotina que transfere para a imobilidade da morte por repetição, o curso vital de uma perene renovação, é o que se demonstra, já no início histórico da filosofia, quando Anaximandro transpõe para o Indiferenciado alguns epítetos que, segundo a tradição mito-poética, só cabiam propriamente a Zeus Olímpico. A intenção do filósofo é clara; mas converter-se-á em deslumbrante evidência e, sobretudo, em mensagem de fácil comunicação e ampla difusão, quando Xenófanes a puser em verso, e escondida naquela métrica em que nenhum grego se cansa de escutar Homero. Não sabemos o que pensariam os filósofos de Mileto acerca dos deuses.
Contudo, se não admitimos uma espontaneidade improvável, dadas as circunstâncias históricas, o conteúdo dos fragmentos de Xenófanes, referentes a um deus, seria inexplicável sem a doutrina de Anaximandro sobre o Indiferenciado, desde que não deixemos cair alguns de seus pormenores no silêncio hostil, ou não, a submetamos, em seu todo, a distorções tendenciosas. Em primeiro lugar, concedamos a palavra a Xenófanes; já que a tradição no-la transmitiu com notável generosidade (os fragmentos «teológicos» seguem-se na ordem numérica da edição de Diels-Kranz): (10) «Já que todos, desde o princípio, aprenderam com Homero…»; (11) «Homero e Hesíodo imputaram aos deuses tudo quanto entre os homens é indecoroso e censurável: roubos, adultérios e enganos recíprocos»; (14) «Mas crêem os mortais que os deuses nasceram e que, tal como eles, têm figura, vestuário e voz»; (15) «Se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões, e se pudessem com as mãos pintar ou produzir obras de arte, como se homens fossem, então os cavalos pintariam, semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, as figuras dos deuses, e esculpiriam os corpos deles, cada um em conformidade com o próprio aspecto»; (16) «De pele negra e nariz achatado, aos Etíopes se afiguram os deuses; mas aos Trácios, de olhos azuis e cabelos louros»; (23) «Um só deus, o supremo entre homens e deuses, diferente dos mortais, na forma como no pensamento»; (24) «Todo ele vê, todo ele pensa, todo ele ouve»; (25) «E sem custo tudo move por força do próprio pensamento»; (26) «Ele sempre se mantém no mesmo lugar, sem mover-se — nem convém à sua natureza, que se mova para cá e para lá». (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)