74. O frg. 57 presta-se, efetivamente, mais do que qualquer outro, a traçar uma linha que passa pelos três pontos assinalados pelos nomes de Hesíodo, Parmênides e Heráclito. A argumentação de Fink, com a qual Heidegger concorda, tanto aproxima Heráclito de Parmênides, quanto os afasta de Hesíodo. Também é certo que, antes de Parmênides, ninguém podia ter dito «o Um é» ou «há o Um» ou «o Um existe»; temos, contudo, nossas dúvidas de que Hesíodo o não soubesse. Boas razões assistem a Fink para dizer, como o diz no final da citação: da parte de Heráclito «trata-se de uma frase intencionalmente provocadora». Hesíodo sabia, não só o que são o dia e a noite («em sua Teogonia, a oposição do dia e da noite significa algo diverso da simples oposição de dois estados do espaço transparente, no qual a luz pode estar presente ou ausente»), mas também que existe o Um. Dá-se, porém o facto de que, na codificação mítica, tal saber não se expressa do modo como se expressará na codificação lógica: à cifra «Um» da filosofia corresponde, na mitologia hesiódica, a cifra «Noite», mais próxima, ou a cifra «Caos», mais distante, mas ambos situados além do horizonte; e a «provocação» de Heráclito tem seus motivos, ou na incompreensão, que é possível, ou, bem mais provavelmente, em sua orgulhosa convicção de que no logos recém-descoberto maior é a transparência à luz da verdade que, porventura, possa caber ao mythos. E agora, se traduzirmos o fragmento, com o sentido posto na interpretação de Fink, teremos: «Mas, mestre do maior número é Hesíodo. Julgam que foi o mais sábio dos homens — ele que, no entanto, não conhecia nem a noite nem o dia. Pois o Um é (há ou existe).» E Fink pergunta: «Será que o frg. 57, entendido a partir do hén, contém um enunciado sobre o dia e a noite?» Duas respostas hipotéticas são substituídas por uma dupla interrogação: «estão, o dia e a noite, no hén, ou são eles o hén?», que nos convida a negar que o dia e a noite sejam o hén, ou nele estejam. Mas, é claro, que em toda a citação acima referida, nunca transparece, nem podia transparecer uma dúvida de que, efetivamente, o fragmento contém um enunciado sobre o dia e a noite. O pensamento de Heráclito podia rejeitar que ele se resolva tão simplesmente de forma que o dia e a noite «são» o hén ou «estão» no hén; no entanto, a existência ou a essência do Um, de algum modo terá de correlacionar-se com a verdade ou a não verdade de um conhecimento do que é a noite e o dia. Na interpretação de Schwabl, Parmênides teria visto essa correlação do modo seguinte: por convenção, duas formas (Luz e Noite) tomam o lugar da forma única, por natureza, que é o Um-Ser, e o erro dos mortais consiste de pensar que esta não é necessária; e poder-se-ia subentender: não é necessária para que se entenda o que sejam as duas contrárias formas, por convenção, proposta em vista de compreender o mundo, tal como ele nos aparece. A «Doxa» de Parmênides prossegue no sentido de demonstrar que a tal necessidade se torna patente, pelo menos na exclusão do nada, que é comum à «Via da Verdade» e à «Opinião dos Mortais». Heráclito concorda com Parmênides, quando afirma que o Um é (há ou existe); mas, por tudo o que nos dizem, ou nos parecem dizer, os demais fragmentos, discorda de Parmênides, quanto à convencionalidade dos contrários. Portanto, se há uma linha que, mediante a convencional da doxa, une Platão a Parmênides, a mesma linha se romperia no ponto em que quiséssemos fixar o sistema de Heráclito.