77. Depois deste rodeio necessário e inevitável, tendente a demonstrar que a descoberta da coincidência dos contrários pressupõe uma «conversão», reverso ou recôncavo sujetivo de uma «revelação» — prossigamos falando deles, com o sentido sempre posto no frg. 57, em que vimos alinharem-se, de algum modo, Hesíodo, Parmênides e Heráclito. Entre Parmênides e Heráclito, assinalamos uma concordância e uma discordância (v. Eudoro-Heraclito-Parmenides); nesta tem de residir a diferença específica — a que não consente que Heráclito entre assim tão facilmente na história da filosofia grega, como qualquer filósofo que de outro recebe um problema, para transmiti-lo ao que se lhe segue. O Efésio não vê, como o viu Parmênides e, talvez, como o verá Platão, que a diversidade do sensível se deva a alguma espécie de convenção. Toda a realidade e verdade do mundo em que vivemos, se firma e se confirma na tensão e na harmonia dos contrários, múltiplos pares de diversidades extremadas em contraposição polares, infinito número de polaridades. A diversidade, assim entendida, não é aparente, ilusória, convencional: não é aparência, mas aparição da physis. E verdade que, desta, Heráclito diz que ela ama, ou prefere, esconder-se (frg. 123) e também que há uma harmonia invisível, que supera a visível (frg. 54). E aqui começamos a entrever qual seja o lugar do Um, e como se relaciona ele com os contrários, dia e noite. O frg. 57 afigura-se-nos tanto mais importante, quanto mais certo parece que a interpretação de Eugen Fink (1905-1975) não exclui a de Diels, o que, em suma, não surpreende, pois a ambiguidade das cifras dir-se-ia que é de regra na codificação heraclítica da realidade. Com os olhos postos na harmonia visível, dia e noite — entenda-se, este, como um entre quaisquer pares de contrários, ou como o par arquetípico de todas as polaridades — é uma e a mesma coisa (note-se que a gramática, ao invés do que Fink parece supor, não elimina a ambiguidade). Mas não esqueçamos a harmonia invisível: a todos as polaridades em conjunto, cada uma das quais é «um», opõe-se a unidade de todas — «pois o Um é (há ou existe)». E que a physis ame ou prefira ocultar-se, não significa que não se desoculta, enquanto se vai ocultando. Desocultação na ocultação, ou ocultação na desocultação, é própria tanto das coisas de que Heráclito fala, quanto do heraclítico falar das coisas; daí a alusão ao Oráculo, «que dá sinais» (frg. 93). Os sinais, o figurado, o enigmático, no estilo do filósofo, não é questão de forma literária, pela qual Heráclito optasse, como poderia ter optado por outra: o visível está aí, diante dele, como sinal da aparição do invisível, e ao sinal-coisa só pode corresponder a palavra-sinal. Mais do que para qualquer outro, em Heráclito se mostra a identidade de «o que é dizer» com o «dizer o que é» pois nele, não é apenas o «material» que está em jogo, mas também o «formal». Na forma de dizer reflete-se a forma do ser. E voltando, mais uma vez, ao frg. 57: que houvesse o Um, sabia-o Hesíodo, embora, como vimos, não soubesse dizê-lo como Parmênides e Heráclito o diriam; mas saberia ele que dia e noite, sendo um, na polaridade de tudo quanto é diverso, esse um era sinal da invisível harmonia, a que ele mesmo aludira pela cifra da «Noite» ou do «Caos»? (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)