69. E certo que mais tem sido o abuso do que o bom uso do «misticismo» platônico (sobre o misticismo em Platão, v. Cárter); mas, aqui, haveria que perguntar se o inegável misticismo dos neoplatônicos alguma vez teria entrado para a história do pensamento filosófico, se, de algum modo, Platão lhe não tivesse entreaberto as portas. Os mal-entendidos que se atribuem aos antigos comentadores do filósofo, resultam de não haverem eles entendido que a Verdade do mestre estava na convergência da codificação lógica e da codificação mítica do que através de todo este ensaio, vimos chamando de «mistério do horizonte». O ponto de convergência oculta-se por detrás de um horizonte inacessível, percorrendo um ou outro de dois caminhos: o que se assinala pela codificação mítica ou o que se inicia pela codificação lógica. O espantoso paradoxo do pensamento platônico é uma exigência que nunca chega à expressão direta — só com a alma dividida, poderíamos caminhar por ambas as vias, a um tempo, mas também, só com a alma inteira podemos ver que nem uma nem outra nos levava aonde pretendíamos chegar. Aqui emerge a cifra da «reminiscência»; o «aonde queremos chegar» é o «donde nós viemos». A cifra pertence, originalmente, à codificação mítica; por isso, ela apresenta-se na obra de Platão com a ambiguidade característica de todo mito; e quando transposta para a codificação lógica verifica-se que uma vez se deduz a imortalidade da alma da reminiscência, outra vez, a reminiscência, da imortalidade da alma. Atendemos só à segunda alternativa, que é a de um breve trecho do Mênon (80 D-81 E): «M) Mas como vais tu procurar uma coisa, ó Sócrates, nada absolutamente sabendo do que ela é? Entre tantos que não conheces, que ponto proporás à tua inquirição? Ou, supondo que por acaso o encontres, como o reconhecerás, posto que não o conheces? — S) Entendo o que pretendes dizer, Mênon. Belo assunto de discussão sofística nos apresentas! E a doutrina segundo a qual não é possível buscar nem o que se conhece nem o que se não conhece; o que se conhece, porque, conhecido, não há necessidade de procurá-lo; o que se não conhece, porque nem sequer se sabe o que se há-de procurar.
— M) E não te parece, Sócrates, que seja este um belo raciocínio?
— S) Não, a meu ver. — M) Podes dizer-me onde falha? — S) Certamente. Escutei homens e mulheres hábeis nas coisas divinas […].
— M) Que diziam eles? — S) Em minha opinião, coisas verídicas e belas. — M) Que coisas, e quem as dizia? — S) Os que as dizem são sacerdotes e sacerdotisas que se aplicam em explicar as funções que exercem; é, ainda, Píndaro e uma multidão de poetas, daqueles que, em verdade, são divinos. Eis o que eles dizem; vê tu, se te parecem falar a verdade. Dizem, pois, que a alma do homem é imortal, e que ora sai da vida — é o que chamam morrer — ora à vida regressa, mas que nunca perece, e que, por conseguinte, é preciso viver esta vida tão santamente quanto possível; pois ‘aqueles que a Perséfone pagaram tributo por seus erros passados, desses, para o Sol nas alturas, a deusa, no ano nono, reenvia as almas, e destas elevam-se as dos reis ilustres, dos varões poderosos pela força, ou grandes pelo saber, que para sempre, como heróis sem mancha entre os mortais são venerados’. [Pínd., frg. 133, Sandys.] Assim, a alma, sendo imortal e muitas vezes renascendo, tendo contemplado todas as coisas, quer na Terra quer no Hades, não pode deixar de tudo haver aprendido; de modo que de assombrar não é, que possua, acerca da virtude e do resto, lembrança do que anteriormente conheceu. Como toda a natureza é homogênea e a alma tudo aprendeu, nada impede que uma única recordação — o que os homens denominam saber — faça que ele torne a achar todas as outras, previsto que se tenha a coragem e não se desista da busca; pois a inquirição e o aprender, não são mais, em seu todo, do que reminiscência (anámnêsis).» E claro que a «alma» de Platão, neste lugar, rigorosamente se identifica com o daimon de Empédocles; uma e outro caíram na caverna que é o mundo. (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)