Eudoro (HC:54) – Poema de Parmênides Fragmento 8 – Comentários

54. Com excepção das linhas grifadas (em itálico), que correspondem aos vv. 53-54, as quatro versões concordam tanto quanto possível, atendendo à estrutura própria de cada idioma e ao gosto literário dos tradutores. Também é certo que aí o original grego explicita o próprio sentido, sem ambiguidades. Mas, chegando aos versos assinalados, o leitor desprevenido hesitaria, se lhe exigissem uma resposta precisa a esta pergunta: em que erraram os mortais? Qual foi o erro? Convirem eles em dar nome às duas formas, o que equivale a estatuírem a existência de dois princípios, como condição necessária, conforme o entendemos (§ 52), para que o ser de algum modo aparecesse no mundo? Ou que, após estatuírem a existência de dois princípios, elegessem só um deles, como único princípio? A), B) e C) parecem dizer que o erro dos mortais residiria na exclusão de uma das formas; mas D) afirma decididamente o contrário, o que parece implicar, contra tudo o que a «Doxa» evidentemente ensina, que, das duas formas, Luz e Noite, a Luz representa o Ser e, por conseguinte, a Noite, o Não-Ser. E ainda haveria a possibilidade — que não emerge claramente de nenhuma das quatro versões — de que a errância dos mortais se desdobra, primeiro, no haver convencionado nomear duas formas, e, depois, em não se aperceberem de que a existência de uma implica a da outra, e que ambas são necessárias para explicar o mundo, segundo a relativa verdade, ou a verosimilhança, da sua aparência. As versões A), B) e C) alinham no sentido da interpretação de Verdenius (1942), das palavras tôn mían ou khréon estin do v. 54, quer delas se tirem ou não as ilações de Hölscher (pp. 103 e 129) — tôn («das quais», isto é, «das duas formas»), mían («uma só»), ou khréon estin («não é necessário» ou «é necessário que não seja», ou ainda «não é permitido que seja»), completando-se o pensamento por acréscimo de «nomear» ou «nomeada»; e o membro da frase traduzir-se-ia, o mais exatamente possível, deste modo: «(os mortais convieram em nomear duas formas) das quais, não é permitido nomear uma só». E agora pergunta-se: a que ou a quem se destina esta advertência da deusa-reveladora? Em primeiro lugar, talvez, a prevenir o logro em que caiu o autor da versão D), embora ele seja da estatura de um Diels (e a versão vem confirmada por Kranz, depois que este assumiu a responsabilidade pelas sucessivas edições dos Fragmente der Vorsokratiker) — além de, como dissemos acima, a hipótese que presidiu a essa tradução seja a de que o Ser se representa pela Luz, neste lugar também se atribuía claramente ao Eleata o intuito de se aproximar do monismo dos «naturalistas» de Mileto. Com efeito, se o erro dos mortais consistiu em não excluir um dos dois princípios, a inevitável consequência é que Parmênides pretenderia a existência de um mundo sensível, provindo de um só princípio. Mas ainda não ficam por aqui as perplexidades diante daquelas palavras do v. 54. Schwabl (1953) propôs outra hipótese: tôn não é um genitivo partitivo, mas sim, um genitivo colectivo, e, no caso, a tradução mais correta seria: «Pois os mortais convieram em nomear duas formas, das quais, uma (isto é, uma única forma, compreendendo justamente aquelas duas) não é necessária — e nisto andaram errados». A forma unitária aponta inequivocamente para o Ser da «Via da Verdade» as duas contrárias têm o seu lugar na «Opinião dos Mortais», onde nunca, repare-se bem, se fala do Ser, assim como na «Via da Verdade» não se encontra palavra que se refira à Luz e à Noite. Conclusão óbvia é que o erro dos homens consiste em não levaram em conta o Ser, como unidade dos contrários, representados pelas duas potências cosmogônicas. Estaria Parmênides assim tão próximo de Heráclito? Por ora, a pergunta fica apenas enunciada. Na sequência, mais interessa acentuar que a última hipótese referida, mais do que qualquer outra, contribui para relevar a unidade interna de composição, sem prejuízo do intuito parmenídeo de separar a «Doxa» da «Verdade»: «em nossa opinião», escreve Schwabl, «Parmênides opõe-se a aceitar as duas formas, só quanto à sua absolutização»; «o que é criticado (na ‘Doxa’) não é a própria separação, mas só o apresentá-la como absoluta» (op. cit., pp. 53 e segs.). (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)

,