As imagens do Tríptico da República facilmente se reduzem ao esquema mais simples, uma vez traçada a linha principal que, no «Sol», separa o sensível, onde reina o astro do dia, do inteligível, onde reina a Ideia do Bem; na «Linha», o mundo das coisas, do mundo das ideias; e na «Caverna», o que se passa no interior, do que se passa no exterior. Essa linha é, designando-a por uma só palavra, a do horizonte. Na codificação mítica, não vemos nem o mais insignificante vestígio de que no «para lá do horizonte» alguma vez se degrade o sensível do «para cá do horizonte». Em Homero ou Hesíodo, ou em qualquer dos poetas que ampliam ou enriquecem a imagem do que há para além dos limites da terra, não se vê que o sensível, para o lado de lá, seja menos do que o sensível, para o lado de cá. Dir-se-ia até que o para além do horizonte, com seu Jardim das Hespérides ou Horto dos Deuses, Ilhas dos Beatos, e tudo o mais que sugere o paradisíaco estado-lugar e estádio-tempo em que o Céu e a Terra ainda se mantêm unidos, se nos apresenta como uma glorificação da sensitividade. Nem os monstros-guardiães do Oceano ou a nevoenta penumbra do Tártaro ou os temíveis vórtices do Caos, contribuem para moderar a impressão de que tudo, no único reino do sensível, é, para lá, um mais, do menos que está para cá. Na codificação filosófica, Parmênides é o primeiro que desenha uma linha divisória do que Platão parece decididamente opor: o sensível, para aquém, e o inteligível, para além do horizonte. E claro e insofismável que a posição de um ponto de arranque para a desvalorização do mundo sensível só se encontra na codificação filosófica, e que Platão, com sua filosofia equacionada a uma «preparação para a morte» se representaria na história do pensamento ocidental, como o arquetípico detrator da vida. No entanto, há qualquer coisa naquela tripla imagem da gnosiologia de Platão, que nos deixa inquietos perante a corrente ideia de que a oposição sensível-inteligível seja tão absoluta e irredutível quanto parece; algo que nos faz pressentir que a codificação filosófica, mesmo e apesar do khorismós parmenídeo e platônico, continua concorrendo com a codificação mítica do mistério do horizonte. Comum às três extensas metáforas da República é, como se sabe e já o dissemos, a separação (khorismós) do sensível e do inteligível, que no «sujeito» se representa pela oposição corpo-alma, e no «objeto», pela oposição matéria-espírito; mas tão comum às três, é também a gradação ascendente: há um «mais» nas coisas, do «menos» que havia nas sombras e nas imagens, e, nas ideias, mais um «mais», do «menos» que havia nas coisas, e, por fim, o «mais do que tudo», na Ideia do Bem; esta última é a Perfeição, o «tudo em um». E claro que, na ordem inversa, o caminho é do «mais» para o «menos». Será que a gradação, ascendente ou descendente, se detém na linha do horizonte, isto é, na linha que separa o sensível do inteligível, de modo que teríamos só um mais ou menos sensível e um mais ou menos inteligível, irremediavelmente apartados, para além e para aquém daquela linha? Ou a gradação não se detém e, por exemplo, nas ideias há um «mais», do «menos» que havia nas coisas? Decerto, a resposta a esta última pergunta só pode ser negativa, quando se entenda que das coisas se passa às ideias, por via de abstração. «Abstrair» significa literalmente «tirar de», e a mais completa abstração, o total esvaziamento. Será a ideia um vazio da coisa? O absurdo, ou, pelo menos, o paradoxal, da pergunta, resulta desta outra: será a coisa um vazio de qualquer de suas sombras ou de suas imagens «reflectidas na superfície da água ou sobre todos os corpos que são ao mesmo tempo compactos, lisos e brilhantes»? E depois, como se poderia dizer que as coisas são «imitações» das ideias, sem pressupor que estas são incomparavelmente mais ricas do que aquelas? Mas, donde lhes viria a riqueza? De tudo quanto se queira, excepto da abstração! Por conseguinte, tudo leva a crer que o tríptico da República, à medida que propõe um inteligível separado do sensível, na mesma medida parece impor que, por exemplo, todos os verdes que existem na natureza estejam realmente contidos no Verde que é. E não nos venham, agora, com o que só depois será dito; que isto ou aquilo se diz de vários modos. De nenhum modo, senão por aquele como Platão o disse, podia ser dito que no Verde estão todos os verdes. Verdadeiro khorismós, talvez seja só o limite do dizível, e do indizível.
Eudoro de Sousa: Tríptico da República
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