Nesse instante um dos presentes falou, não saberei dizer com segurança quem tivesse sido: Pelos deuses! Em nossa prática de há pouco não foi dito justamente o oposto do que é afirmado agora, que do maior nasce o menor, e vice-versa, do menor o maior, e que essa é, precisamente, a maneira de nascerem os contrários, de seus respectivos contrários? No entanto, quer parecer-me que afirmaste não ser isso possível.
Sócrates, que se inclinara para melhor ouvi-lo, então falou: A observação é corajosa, porém não apanhaste bem a diferença entre o que foi dito antes e a presente afirmativa. O que então dissemos é que a coisa contrário nasce da que lhe é contrária, porém agora que o contrário jamais admite ser seu próprio contrário, nem em nós nem na natureza. Naquela ocasião, meu caro, falávamos de coisa que têm contrários; agora, porém tratamos dos próprios contrários inerentes as coisas, cuja presença empresta a todas a respectiva designação. Ora, o que afirmamos é que esses contrários, justamente, não admitem transição de um para outro.
Ao dizer isso, voltou-se para Cebete e lhe falou: Porventura, Cebete, lhe disse, deixou-te atrapalhado a objeção deste aqui?
Não é o meu caso, respondeu Cebete, conquanto não possa dizer que tudo para mim esteja claro.
Mas o fato, prosseguiu, é que já assentamos que nunca o contrário pode ser o contrário de si mesmo.
Sem a mínima restrição, foi a sua resposta.
Então, considera também o seguinte, continuou, para ver se estás de acordo comigo. Não há alguma coisa a que damos o nome de quente, e outra que denominamos frio?
Sem dúvida.
E serão, porventura, o mesmo que a neve e o fogo?
Não, por Zeus; nunca afirmei semelhante coisa.
Logo, o quente não é a mesma coisa que o fogo, nem o frio o mesmo que a neve.
Exato.
Mas, estou certo de que também admires que nunca poderá a neve, como neve, conforme dissemos há pouco, depois de receber o calor, continuar a ser o que era: neve com calor. Com a aproximação do calor, ou ela se retira ou vem a fenecer.
Perfeitamente.
Tal qual como o fogo: com a chegada do frio, retira-se ou perece; de jeito nenhum, depois de receber o frio, se atreveria a ser o que antes era: fogo, a um tempo, e frio.
Falaste com muito acerto, observou.
Pode acontecer, continuou, nalguns exemplos desse tipo, que não somente a ideia em si mesma tenha o direito de conservar eternamente o mesmo nome, como também algo diferente que, sem ser daquela ideia, apresenta-se, enquanto existe, com sua forma. É possível que com o seguinte exemplo eu deixe mais claro meu pensamento. O número ímpar terá de conservar sempre esse nome com o que designamos. Ou não?
Perfeitamente.
Mas, é só com ele que isso acontece – é o que pergunto – ou com mais alguma coisa que, sem ser, de fato, o ímpar em si mesmo, ao lado do seu próprio nome terá forçosamente de ser sempre denominado dessa maneira, por ser de tal natureza, que nunca pode dispensar o ímpar? Com isso, quero referir-me ao que se passa com o conceito da tríade e muitos outros da mesma espécie. Considera apenas o número três. Não te parece que ele precisará sempre ser designado, a um só tempo, pelo seu próprio nome e pelo do ímpar, apesar de não ser o nome ímpar a mesma coisa que três? Seja como for, de tal modo é constituída a natureza do três, do cinco e de toda uma metade dos números, que apesar de cada um deles não ser a mesma coisa que o ímpar, sempre terão de ser ímpares. O mesmo se passa com o dois, o quatro e toda a outra metade dos números, que, sem serem o par, sempre terão de ser partes. Admites isso ou não?
Como não admitir? Foi a sua resposta.
Presta agora atenção, disse, ao que me disponho a demonstrar. Trata-se do seguinte: é fora de dúvida que não são apenas os contrários que se excluem reciprocamente, mas todas as coisas que, sem serem contrárias entre si, não admitem a ideia contrária da que lhes é própria, à aproximação da qual ou cedem o lugar ou vêm a perecer. Pois já não dissemos que o número três primeiro deixará de existir ou sofrerá seja o que for, antes de vir a ficar par, por ser, de fato, o que é, precisamente três?
É muito certo, falou Cebete.
No entanto, continuou, os números dois e três não são contrários entre si.
Nunca.
Logo, não são apenas as ideias contrárias que não admitem a aproximação recíproca; há outras, também, que não aceitam essa aproximação dos contrários.
É muito certo o que afirmas, respondeu.
E não acharias bom, continuou, determinarmos, na medida do possível, quais essas ideias?
Perfeitamente.
Não serão, Cebete, prosseguiu, as que forçam as coisas de que elas se apoderam a conservar tanto a sua própria forma como a que sempre lhes é contrária?
Que queres dizer com isso?
O que declaramos neste momento. Como muito bem sabes, todas as coisas de que se apossa a ideia do número três, tanto terão, por força, de ser três como ímpares.
É muito certo.
Ora bem; o que dizemos é que a ideia contrária à forma eu a constitui nunca pode entrar nela.
Nunca, de fato.
O que a constitui é a ideia do ímpar, não é isso mesmo?
Certo.
Como o seu contrário é a ideia do par.
Sem dúvida.
Sendo assim, no três jamais entrará a ideia de par.
Nunca.
Pelo simples fato de o três não participar do par.
Isso mesmo.
Visto ser ímpar.
Exatamente.
Pois era isso, precisamente, que eu queria determinar: as coisas que, sem serem contrárias entre si, não admitem o seu contrário. Será o caso do três quem, sem ser o contrário do par, de forma alguma o aceita, pois ele lhe opõe sempre o seu contrário, como faz o dois com o ímpar, o fogo com o frio e um infinito mais de exemplos. Dize-me agora se não concluirias que não é apenas o contrário que não recebe o seu contrário, porém tudo o que leva a ideia do contrário da coisa que o recebe, não admite nesta o contrário daquilo que ele leva. Recapitulemos tudo o que dissemos até aqui, pois não há mal em ouvir a mesma coisa várias vezes: O número cinco não admite a ideia de par, nem o dez, o dobro daquele, a de ímpar. Por sua vez, o duplo é o contrário de outra coisa, porém não admite a ideia do ímpar, como também não a admitem os números sesquiálteros, o meio e outras frações do mesmo tipo, nem a ideia de todo, de terço e de tudo o mais da mesma natureza, se é que me acompanhas e estás de acordo comigo.
Não somente estou de inteiro acordo, disse, como te acompanho.