Fédon 105b-107a — Prova da imortalidade, fundada sobre a teoria dos contrários

Então, repete tudo isso do começo, continuou, porém não me responda com minhas próprias palavras, mas de outra forma, tomando-me como modelo. O que digo é que, além da resposta certa que eu apresentei no começo, encontrou outra de não menor confiança no que ficou dito depois. De fato, se me perguntasses: Que precisas haver no corpo para que ele fique quente? Não te daria a resposta, certa, sem dúvida, porém ingênua, que é o calor, porém outra muito mais aprimorada, com base em nossa exposição anterior: fogo. Como também se me perguntasses o que precisa haver no corpo, para que ele adoeça, não responderia que é a doença, porém alguma febre. E no caso de perguntares o que precisa haver num número para ser ímpar, não me referira a imparidade, mas à unidade, e assim sucessivamente. Agora vê se apanhaste bem meu pensamento.

À maravilha, respondeu.

Então, me digas, continuou, que precisa haver no corpo para que ele viva?

Alma, respondeu.

E sempre terá de ser assim?

Por que não? Foi sua resposta.

Logo, tudo o de que a alma se apodera, a isso ela dá vida?

É o que ela faz, de fato, respondeu.

E porventura haverá alguma coisa contrária à vida? Ou não há?

Sem dúvida, respondeu.

Que é?

A morte.

De onde vem, que a alma nunca poderá aceitar o contrário daquilo que ela sempre traz consigo; é o que se conclui de tudo o que dissemos até agora.

Conclusão certíssima, respondeu Cebete.

E então? O que não admite a ideia do par, que nome lhe demos agora mesmo?

Ímpar, respondeu.

E o que não recebe o justo, ou não recebe o harmônico?

Desarmônico, disse, ou injusto.

Muito bem. E o que não recebe a morte, como denominaremos?

Imortal, foi a sua resposta.

Ora, a alma não recebe a morte.

Não.

A alma é, pois, imortal?

Imortal.

Muito bem. Podemos afirmar, por conseguinte, que isso ficou demonstrado? Ou como te parece?

Ficou demonstrado à saciedade, Sócrates.

E agora, Cebete, continuou: se o ímpar fosse indestrutível por força das coisas, não teria também de ser indestrutível o três?

Como não?

E se o não-quente também fosse por necessidade indestrutível, sempre que alguém aproximasse da neve o fogo, não se retiraria a neve intacta e sem derreter-se? Não pereceria, é claro, e por mais que ficasse exposta ao calor, não o receberia.

É muito certo, respondeu.

Como também, segundo penso, se o não-frio fosse indestrutível por natureza, e alguém aproximasse do fogo o frio, jamais o fogo se apagaria ou viria a fenecer, porém afastar-se-ia incólume.

Necessariamente, respondeu.

E não será também preciso falarmos nesses mesmo termos no que entende com o mortal? Se o imortal também for imperecível, a alma, sempre que a morte se aproximar dela, não poderá morrer; pois de acordo com o que dissemos antes, ela não admitirá a morte nem virá a morrer, da mesma forma que o três, conforme vimos, nunca poderá ser par, e com ele o ímpar, nem o fogo ficará frio nem o calor que há no fogo. Porém o que impede – poderia alguém objetar – que o ímpar, muito embora não fique par à aproximação do par, e sobre isso, já nos declaramos de acordo, venha, de fato, a perecer, por transformar-se em par? A quem tal objetasse, não poderíamos responder que não perece, pois o ímpar não é indestrutível. Porém se isso houvesse sido aceito antes por nós, fora fácil retorquir que à aproximação do para o ímpar e o três se retiram. Da mesma maneira responderíamos com respeito ao calor, ao fogo e a tudo o mais. Ou não?

Sem dúvida.

Sendo assim, agora, com relação ao imortal, uma vez admitido por nós dois que também é imperecível, a alma, terá de ser por força imperecível. Caso contrário, precisaríamos lançar mão de outro argumento.

Não por causa disso, retorquiu; dificilmente poderia haver que não admitisse a destruição, se o imortal, com ser eterno, fosse passível de acabar.

Quanto a Deus, falou Sócrates, ao que suponho, e à ideia da vida e a tudo o mais que possa haver de imortal, todos estão de acordo em que nunca podem parecer.

Sim, por Zeus, todos os homens, respondeu, e, com maioria de razões, os próprios deuses.

Era, uma vez que o imortal é imperecível, a alma, sendo imortal, não terá de ser, da mesma forma, imperecível?

Forçosamente.

Logo, como parece , ao aproximar-se dos homens a morte, o que neles for mortal terá de perecer, enquanto sua porção imortal cede o lugar à morte e continua sã e incorruptível.

Claro.

É certíssimo, por conseguinte, Cebete, continuou, ser a alma imortal e imperecível, e existirem realmente nossas almas no Hades.