Fédon 111c-113c — Geografia infernal

Nas entranhas da terra, por todo o seu contorno notam-se numerosas concavidades, algumas mais profundas e patentes do que esta em que moramos, outras também profundas, porém com entrada mais angusta do que a nossa, havendo, ainda, umas tantas de menor fundura, porém mais largas do que esta. Todas essas regiões se comunicam entre si em muitos lugares por passagens subterrâneas, de largura variável, além de possuírem outras vias de acesso. Muita água corre de uma para outra, como nos grandes vasos, havendo, outrossim, embaixo da terra rios perenes de grandeza descomunal, de água quente e fria, e também muito fogo e grandes rios de fogo, bem como correntes de lama líquida, ora mais limpa, ora mais suja, tal como antes de lava os rios de lama da Sicília, e depois a própria lava. Essas diferentes regiões se enchem de semelhante matéria, de acordo com a direção ocasional da corrente. Essas águas se movimentam para cima e para baixo, como um pêndulo colocado no interior da terra. Semelhante oscilação deve provir do seguinte: Entre as aberturas da terra, uma há particularmente grande, que a atravessa em toda a sua extensão e a que se refere Homero nos seguintes termos:

Essa voragem profunda que em baixo da terra se encontra, e que por ele mesmo e muitos outros poetas é denominada Tártaro. É para essa abertura que confluem todos os rios, como é dela, também, que todos partem, adquirindo cada um as propriedades do terreno por onde passam. A razão de saírem de todos os rios dessa abertura e de voltarem para ela, é carecerem suas águas de fundo e de base; daí oscilarem e flutuarem para cima e para baixo. Concorrem para o mesmo efeito o ar e o vento que as envolvem, por acompanhá-las tanto quando se precipitam para as regiões do outro lado da terra como quando se dirigem para o lado de cá. E assim como o sopro de quem respira se encontra em constante movimento, na inspiração e na expiração, do mesmo modo o sopro predominante naquelas regiões, juntamente com as águas, quando entram e quando saem, produz ventos de irresistível violência. Ao se dirigirem as águas para os lugares que denominamos de baixo, afluem para os leitos das correntes desse lado e os enchem, como nos sistemas de irrigação; quando, inversamente, os abandonam e retornam para cá, voltam a encher os deste lado. Uma vez cheios, correm pelos canais e pela terra, seguindo as vias naturais do solo e passam a formar lagos, mares, rios e fontes. De lá, voltando a mergulhar na terra, depois de uma parte das águas circular por maios número de regiões e mais extensas, enquanto outras fazem trajeto pequeno em menos lugares, lançam-se outra vez no Tártaro, algumas muito mais abaixo do nível em que corriam, outras um pouco menos, conquanto desemboquem todas muito abaixo do ponto de partida. Alguns rios irrompem do lado oposto da saída, outros do mesmo lado; sim, casos há de descreverem um círculo completo: enrolando-se uma ou mais vezes em torno da terra, à feição de serpentes, descem o mais possível para de novo se lançarem no Tártaro. Os rios de ambos os lados podem baixar até o centro, porém não ultrapassá-lo, pois de cada lado a margem desses rios é de aclive acentuado.

Há muitas outras caudais do mais variado aspecto, porém nessa multidão de rios há quatro, particularmente, dos quais o maior e mais afastado do centro, denominado Oceano, circunda a Terra inteira. De fronte deste e em sentido contrário deflui o Aqueronte, que além de atravessar muitas regiões desertas, corre por baixo da terra, até alcançar a Lagoa Aquerúsia, para onde vão as almas da maioria dos mortos, as quais, depois de ali permanecerem o tempo marcado pelo destino, umas mais outras menos, são reenviadas para renascerem em animais. O terceiro rio irrompe dentre os dois primeiros, para lançar-se, perto de sua origem, num lugar amplo e cheio de fogo, onde forma um lago maior do que o nosso mar, de água e lama ferventes. Daí, torvo de tanta lama, descreve um círculo e depois de contornar a terra e atravessar outros lugares, atinge o limite extremo da Lagoa Aquerúsia, sem que suas águas se misturem com as desta. Por fim, depois de muitas voltas sempre dentro da terra lança-se na porção mais baixa do Tártaro. Esse é que tem o nome de Piriflegetonte, cujas lavas jogam partículas incandescentes em diversos pontos da superfície da terra. Defronte dele, por sua vez, desemboca o quarto rio, a princípio numa região selvática e pavorosa, e, ao que se diz, toda ela de colorido azul escuro, denominada Estígia, sendo chamada Estige a lagoa em que ele vem lançar-se. Depois de nela cair e adquirirem suas águas propriedades terríveis, afunda pela terra, traçando voltas sem conta em sentido contrário às do Piriflegetonte, com o qual vai defrontar-se no lado oposto da lagoa Aquerúsia. Suas águas, também, não se misturam com as outras, vindo ele a desaguar no Tártaro defronte do Piriflegetonte. O nome desse rio, no dizer dos poetas, é Cócito.