Fédon 114c-116a — Lição do mito

Do que vos expusemos, Símias, precisamos tudo fazer para em vida adquirir virtude e sabedoria, pois bela é a recompensa e infinitamente grande a esperança.

Afirmar, de modo positivo, que tudo seja como acabei de expor, não é próprio de homem sensato; mas que deve ser assim mesmo ou quase assim no que diz respeito a nossas almas e suas moradas, sendo a alma imortal como se nos revelou, é proposição que me parece digna de fé e muito própria para recompensar-nos do risco em que incorremos por aceitá-la como tal. É um belo risco, eis o que precisamos dizer a nós mesmos à guisa da formula de encantamento. Essa é a razão de me ter alongado neste mito. Confiado nele; é que pode tranquilizar-se com relação a sua alma o homem que passou a vida sem dar o menor apreço aos prazeres do corpo e aos cuidados especiais que este requer, por considerá-los estranhos a si mesmo e capazes de produzir, justamente, o efeito oposto. Todo entregue aos deleites da instrução, com os quais adornava a alma, não como se o fizesse com algo estranho a ela, porém como joias da mais feliz indicação: temperança, justiça, coragem, nobreza e verdade, espera o momento de partir para o Hades quando o destino o convocar. Vós também, Símias e Cebete, acrescentou, e todos os outros, tereis de fazer mais tarde essa viagem, cada um no seu tempo. A mim, porém, para falar como herói trágico, agora mesmo chama-me o destino. Mas esta quase na hora de tomar o banho. Acho melhor fazer isso antes de beber o veneno, para não dar às mulheres o trabalho de lavar o cadáver.

Depois de dizer essas palavras, falou Critão: Está bem, Sócrates; porém que determinações me deixas ou a estes aqui, a respeito de teus filhos, ou o que mais poderemos fazer por amor de ti, que nos fora grato executar?

O que sempre vos digo, Critão, foi a sua resposta; nada tenho a acrescentar: se cuidardes de vós mesmos, tudo o que fizerdes será tanto por amor de mim e dos meus como de todos, ainda mesmo que nada me tivésseis prometido neste momento. Porém no caso de vos descuidardes de vós mesmos e de não orientardes a vida como que no rastro do que vos disse agora e no passado, por mais numerosos e solenes que fossem vossos juramentos neste instante, não avançareis um único passo.

Quanto a isso, respondeu, esforçar-nos-emos para viver dessa maneira. Mas, como devemos sepultar-te?

Como quiserdes, disse; basta que segureis de verdade e que eu não vos escape.

Depois, sorriu de mansinho e disse, olhando para o nosso lado: Não consigo, senhores, convencer Critão de que eu sou o Sócrates que neste momento conversa com ele e comenta seus argumentos; toma-me por quem ele irá ver morto dentro de pouco. Por isso pergunta como deverá sepultar-me. Quanto ao que vos tenho dito tantas vezes, que depois de beber o veneno não ficarei convosco mais irei compartilhar da dita dos bem-aventurados, ele acha que eu só falo assim para tranquilizar-vos e a mim também. Servi-me, pois, de fiador junto de Critão, porém que seja essa fiança o oposto da que ele prestou perante os juízes. Empenhou, então, a palavra em como eu ficaria; por vossa vez, afirmai-lhe, que não ficarei depois de morto, porém sairei daqui e partirei, para que ele se mostre mais paciente e não se aflija tanto por minha causa, quando vir queimarem ou enterrarem meu corpo, no pressuposto de que eu esteja sofrendo enormemente, nem diga nos meus funerais que expõe Sócrates, ou o carrega, ou o sepulta. Fica sabendo, continuou, meu admirável Critão, que a imprecisão da linguagem, além de ser um defeito em si mesma, produz mal às almas. Importa criares coragem e dizer que é meu corpo que vais enterrar; depois sepulta-o como te aprouver e como te parecer mais de acordo com as leis.