Fédon 116a-118a — Epílogo

Tendo acabado de falar, levantou-se e foi para outro compartimento, a fim de banhar-se. Critão o acompanhou; a nós mandou que esperássemos. Ali ficamos, então, a conversar e comentar tudo o que ele dissera e a discorrer sobre o nosso grande infortúnio. Sentíamos, em verdade, como quem houvesse perdido o pai e tivesse de ficar órfão para o resto da vida. Depois de tomar banho, trouxeram-lhe os filhos – dois ainda eram pequenos; o outro, mais crescido. – Chegaram também as mulheres de casa, com as quais ele conversou na frente de Critão, e depois de lhes haver feito certas recomendações, pediu que retirassem dali as mulheres e os meninos e veio para o nosso lado. O sol já estava quase a desaparecer, pois Sócrates havia ficado lá dentro bastante tempo. Ao vir do banho, sentou-se, porém não conversou muito. Achegou-se-lhe o comissário dos Onze, que lhe disse:

Sócrates, falou, de ti não terei de queixar-me como dos outros, que se zangam comigo e rompem em palavras e pragas, quando os convido a tomar o veneno por determinação superior. No teu caso, pelo contrário, durante todo este tempo e em várias outras oportunidades, pude reconhecer em ti o homem mais nobre, mais delicado e melhor de quantos para aqui têm vindo. Hoje, especialmente, tenho certeza de que não te zangarás comigo, pois sabes muito bem que é dos outros a culpa. E agora, já que ficaste ciente do que vim anunciar-te. Adeus; suporta o inevitável da melhor maneira possível.

E desatando a chorar, deu as costas e retirou-se. Sócrates olhou para ele disse: Adeus, também para ti; faremos isso mesmo.

Depois, voltando-se para o nosso lado: Que homem delicado! Disse. Durante todo este tempo , vinha sempre ver-me e várias vezes conversou comigo. Excelente criatura. Agora mesmo, quanta generosidade revela com esse choro por minha causa! Porém vamos, Critão; obedeçamos-lhe; tragam logo o veneno, se estiver pronto; senão, cuide de prepará-lo o encarregado disso.

Critão observou: O que eu acho, Sócrates, lhe disse, é que o sol ainda está por cima das montanhas; não baixou de todo. Sei também que muitos tomaram o veneno bem depois da intimação e de comerem e beberem à farta; sim, alguns mesmo depois de relações amorosas com que lhe apetecesse. Não te apresses; temos tempo.

E Sócrates: É natural, Critão, assim falou, que esses tais procedessem conforme disseste, por imaginarem que disse lhes adviria alguma vantagem. Mas é também natural não proceder eu dessa maneira, pois não vejo o que posso vir a lucrar em beber o veneno um pouco mais tarde, se não for tornar-me ridículo a meus próprios olhos, por agarrar-me dessa maneira à vida e tentar economizar o que já não existe. Vamos, continuou: obedece-me e só faças o que eu digo.

Ouvindo-o, Critão fez sinal ao menino que se encontrava mais perto. Este saiu e voltou pouco depois em companhia do encarregado de lhe dar o veneno, que já o trazia espremido na taça. Ao ver o homem, Sócrates perguntou-lhe. E agora, meu caro: já que entendes destas coisas, que precisarei fazer?

Nada mais, respondeu, do que andar depois de beber, até sentires peso nas pernas, e em seguidas deitar-te. Assim o veneno atuará.

Depois dessas palavras, estendeu a Sócrates a taça, que a tomou das mãos dele com toda a tranquilidade, sem o menor tremor nem alteração da cor ou das feições. Mirando por baixo o homem, com aquele seu olhar de touro, perguntou-lhe: Que me dizes? E se eu fizesse uma libação com um pouquinho disto aqui? É permitido ou não?

Só preparamos, Sócrates, respondeu, a quantidade que nos parece suficiente.

Compreendo, retrucou. Mas pelo menos é permitido, e até um dever, pedir aos deuses que façam feliz a passagem deste mundo para o outro. É o que peço. Prouvera que me atendam!

Depois de assim falar, levou a taça aos lábios e com toda a naturalidade, sem vacilar um nada, bebeu até à última gota. Até esse momento, quase todos tínhamos conseguido reter as lágrimas; porém quando o vimos beber e que havia bebido tudo, ninguém mais aguentou. Eu também não me contive: chorei à lágrima viva. Cobrindo a cabeça, lastimei o meu infortúnio; sim, não era por desgraça que eu chorava, mas a minha própria sorte, por ver de que espécie de amigo me veria privado. Critão levantou-se antes de mim, por não poder reter as lágrimas. Apolodoro, que desde o começo não havia parado de chorar, pôs se a urrar, comovendo seu pranto e lamentações até o íntimo todos os presentes, com exceção do próprio Sócrates.

Que é isso, gente incompreensível? Perguntou. Mandei sair as mulheres, para evitar esses exageros. Sempre soube que só se deve morrer com palavras de bom agouro. Acalmai-vos! Sede homens!

Ouvindo-o falar dessa maneira, sentimo-nos envergonhados e paramos de chorar. E ele, sem deixar de andar, ao sentir as pernas pesadas, deitou-se de costas, como recomendara o homem do veneno. Este, a intervalos, apalpava-lhe os pés e as pernas. Depois, apertando com mais força os pés, perguntou se sentia alguma coisa. Respondeu que não. De seguida, sem deixar de comprimir-lhe a perna, do artelho para cima, mostrou-nos que começava a ficar frio e a enrijecer. Apalpando-o mais uma vez, declarou-nos que no momento em que aquilo chegasse ao coração, ele partiria. Já se lhe tinha esfriado quase todo o baixo-ventre, quando, descobrindo o rosto – pois o havia tapado antes – disse, e foram suas últimas palavras: Critão, exclamou, devemos um galo a Asclépio. Não te esqueças de saldar essa dívida!

Assim farei, respondeu Critão, vê se queres dizer mais alguma coisa.

A essa pergunta, já não respondeu. Decorrido mais algum tempo, deu um estremeção. O homem o descobriu; tinha o olhar parado. Percebendo isso, Critão fechou-lhe os olhos e a boca.

Tal foi o fim do nosso amigo, Equécrates, do homem, podemos afirmá-lo, que entre todos os que nos foi dado conhecer, era o melhor e também o mais sábio e mais justo.