Prelúdio da última conversa (60b-61c)

Sócrates, de seu lado, sentado no catre, dobrou a perna sobre a coxa e começou a friccioná-la duro com a mão, ao mesmo tempo que dizia: Como é extraordinário, senhores, o que os homens denominam prazer, e como se associa admiravelmente com o sofrimento, que passa, aliás, por ser o seu contrário. Não gostam de ficar juntos no homem; mal alguém persegue e alcança um deles, de regra é obrigado a apanhar o outro, como se ambos, com serem dois, estivessem ligados pela cabeça. Quer parecer-me, continuou, que se Esopo houvesse feito essa observação, não deixaria de compor uma fábula: Resolvendo Zeus pôr termo as suas dissensões contínuas, e não o conseguindo, uniu-os pela extremidade. Por isso, sempre que alguém alcança um deles, o outro lhe vem no rastro. Meu caso é parecido: após o incômodo da perna causada pelos ferros, segue-se-lhe o prazer.

Nesta altura, falou Cebete: Por Zeus, Sócrates, disse, foi bom que mo lembrasses. Diversas pessoas já me têm falado a respeito dos poemas que escreveste, aproveitando as fábulas de Esopo, e do hino em louvor de Apolo. Anteontem mesmo, o poeta Eveno me interpelou sobre a razão de compores verso desde que te encontras aqui, o que antes nunca fizeras. Se te importa deixar-me em condições de responder a Eveno quando ele voltar a falar-me a esse respeito – e tenho certeza de que o fará – instrui-me sobre o que deverei dizer-lhe.

Então dize-lhe a verdade, Cebete, replicou: que não me movia o desejo de fazer-lhe concorrência nem aos seus poemas, quando compus os meus, o que, aliás, tentativa para rastrear o significado de uns sonhos e cumprir, assim, minha obrigação, no sentido de saber se era essa a modalidade de música que me recomendavam com insistência. É o seguinte: Muitas e muitas vezes em minha vida pregressa, sob formas diferentes me apareceu um sonho, porém dizendo sempre a mesma coisa: Sócrates, me falava, compõe música e a executa. Até agora eu estava convencido de ser justamente o que eu fizera a vida toda o que o sonho me insinuava e concitava a fazer, à maneira de como costumamos estimular os corredores: desse mesmo modo, o sonho me exortava a prosseguir em minha prática habitual, a compor música, por ser a Filosofia a música mais nobre e a ela eu dedicar-me. Agora, porém, depois do julgamento e por haver o festival do deus adiado minha morte, perguntei a mim mesmo se a música que com tanta insistência o sonho me mandava compor não seria essa espécie popular, tendo concluído que o que importava não era desobedecer ao sonho, porém fazer o que ele me ordenava. Seria mais seguro cumprir essa obrigação antes de partir, e compor poemas em obediência ao sonho. Assim, comecei por escrever um hino em louvor à divindade cuja festa então se celebrava. Depois da divindade, considerando que quem quiser ser poeta de verdade terá de compor mitos e não palavras, por saber-me incapaz de criar no domínio da mitologia, recorri às fabulas de Esopo que eu sabia de cor e tinha mais à mão, havendo versificado as que me ocorreram primeiro.

Isso, Cebete, é o que deverás dizer a Eveno. Apresenta-lhe, também, saudações de minha parte, acrescentando que, se ele for sábio, deverá seguir-me quanto antes. Parto, ao que parece, hoje mesmo; assim os determinam os Atenienses.