Estudemo-lo, pois, sob o seguinte aspecto: se as almas dos mortos se encontram ou não se encontram no Hades? Conforme antiga tradição, que ora me ocorre, as almas lá existentes foram daqui mesmo e para cá deverão voltar, renascendo os mortos. A ser assim, e se os vivos nascem dos mortos, não terão de estar lá mesmo nossas almas? Pois não poderiam renascer se não existissem, vindo a ser essa, justamente a prova decisiva, no caso de ser possível deixar manifesto que os vivos de outra parte não procedem senão dos mortos. Se isso não for verdade, teremos de procurar outro argumento.
Isso mesmo, disse Cebete.
Para deixar a questão mais fácil de entender, observou, não te limites a considerá-la com relação aos homens, porém estende-a ao conjunto dos animais e das plantas, numa palavra, a tudo o que nasce, a fim de vermos se cada coisa não se origina exclusivamente do seu contrário, onde quer que se verifique essa relação, tal como no caso do belo, que tem como contrário o feio, no do justo e do injusto e em mil outro exemplos que se poderiam enumerar. Investiguemos, então, se é forçoso que tudo o que tenha algum contrário de nada mais possa originar-se a não ser desse mesmo contrário. Por exemplo: para ficar grande alguma coisa, é preciso que antes fosse pequena, sem o que não poderia aumentar.
Certo.
E para diminuir, não é preciso ser maior, para depois vir a ficar pequena?
Exatamente, respondeu.
Assim, do mais forte nasce o mais fraco e do moroso, o rápido.
Sem dúvida.
E então? Se alguma coisa piora, é porque antes era melhor, como terá sido antes injusta para poder tornar-se justa?
Como não?
E agora? Não é próprio dessa oposição universal haver dois processos de nascimento: o que vai de um contrário para o outro, e o de sentido inverso: deste último para aquele? Entre a coisa maior e a menor há crescimento e diminuição, razão por que dizemos que uma delas cresce e a outra diminui.
É certo, respondeu.
Vale o mesmo para a combinação e a decomposição, o resfriamento e o aquecimento, e para as demais oposições do mesmo tipo. E embora nem sempre tenhamos para todas elas designação apropriada, é forçoso nesses casos ser idêntico o processo, de forma que cada coisa cresce à custa de outra, sendo recíproca a geração entre elas.
Sem dúvida, observou.
XVI – E então? Prosseguiu: viver não comporta um contrário, tal como se dá com a vigília e o sono?
Perfeitamente, respondeu.
Qual é?
Estar morto, foi a resposta.
Sendo assim, cada um desses estados provém do outro, visto serem contrários, havendo entre ambos um processo recíproco de geração.
Como não?
Vou falar de um dos pares de contrários a que me referi há pouco, disse Sócrates, e de suas respectivas gerações; tu te manifestarás a respeito do outro. Denomino o primeiro, vigília e sono; da vigília nasce o sono, e vice-versa: do sono, a vigília, tendo um dos processos o nome de acordar e o outro o de dormir. Isso te basta, perguntou, ou não?
Perfeitamente.
É tua agora a vez, prosseguiu, de falar a respeito da vida e da morte. Não disseste que estar vivo é o contrário de estar morto.
Disse.
E que um é gerado do outro?
Também.
Que é, então, o que provém do vivo?
O morto, respondeu.
E do morto, voltou a falar, o que se origina?
Será forçoso convir que é o vivo.
Sendo assim, Cebete, do que está morto provêm os homens e tudo o que tem vida?
É evidente, respondeu.
Logo, continuou, nossas almas estão no Hades.
Parece que sim.
E desses dois processos correlativos, um não nos é manifesto? Pois o ato de morrer é bem visível, não é isso mesmo?
Sem dúvida, respondeu.
Que faremos, então? Continuou; não atribuiremos a esse processo de geração o seu contrário, ou admitiremos que nesse ponto a natureza é manca? Não será preciso aceitarmos um processo gerador oposto ao de morrer?
Sem dúvida nenhuma, respondeu.
Qual?
Reviver.
Logo, continuou, se o reviver é um fato, terá de ser uma geração no sentido dos mortos para os vivos: a revivescência.
Perfeitamente.
Desse modo, ficamos também de acordo que tanto os vivos provêm dos mortos como os mortos dos vivos. Sendo assim, quer parecer-me que apresentamos um argumento bastante forte para afirmar que as almas dos mortos terão necessariamente de estar em alguma parte, de onde voltam a viver.
A meu parecer, Sócrates, replicou, é a conclusão forçosa de tudo o que admitimos até aqui.
Observa também, Cebete, continuou, que não chegamos a esse acordo aereamente, segundo me parece. Porque se um desses processos não fosse compensado pelo seu contrário, girando, por assim dizer, em círculo, mas sempre se fizesse a geração em linha reta, de um dos contrários para o seu oposto, sem nunca voltar desta para aquele, nem andar em sentido inverso: fica sabendo que tudo acabaria numa forma única e ficaria num só estado, cessando, por isso mesmo, a geração.
Como assim? Perguntou.
Não é difícil, continuou, compreender o sentido de minhas palavras. No caso, por exemplo, de existir o sono, porém sem haver o correspondente despertar do que estiver dormindo, bem sabes que acabaria por transformar em banalidade a fábula de Eudimião, a qual não seria percebida em parte alguma, porque tudo o mais ficaria como ele, num sono universal. E se todas as coisas se misturassem, sem virem a separar-se, dentro de pouco tempo seria um fato aquilo de Anaxógaras: a confusão geral. A mesma coisa se daria, amigo Cebete, se viesse a perecer quanto participa da vida, e, depois de morto, se conservasse sempre no mesmo estado, sem nunca renascer; não seria inevitável vir tudo a ficar morto e nada mais viver? Se o que é vivo provém de algo diferente da morte e acaba por morrer: como evitar que tudo acabe por desaparecer na morte?
Não há meio, Sócrates, respondeu Cebete, segundo penso; quer parecer-me que te assiste toda a razão.
A mim também, Cebete, continuou, se me afigura muito certo, não havendo possibilidade de engano da nossa parte, pois ficamos de acordo nesse ponto. Sim, o reviver é um fato, os vivos provêm dos mortos, as almas dos mortos existem, sendo melhor a sorte das boas e pior a das más.