Fédon 80d-82c — Destino das almas após a morte

Pelo contrário; o que se dá é o seguinte: se ela é pura no momento de sua libertação e não arrastar consigo nada corpóreo, por isso mesmo que durante a vida nunca mantivera comércio voluntário com o corpo, porém sempre evitara, recolhida em si mesma e tendo sempre isso como preocupação exclusiva, que outra coisa não é senão filosofar, no rigoroso sentido da expressão, e preparar-se para morrer facilmente… Pois tudo isso não será um exercício para a morte?

Sem dúvida nenhuma.

Assim constituída, dirige-se para o que lhe assemelha, para o invisível, divino, imortal e inteligível, onde, ao chegar, vive feliz, liberta do erro, da ignorância, do medo, dos amores selvagens e dos outros males da condição humana, passando tal como se diz dos iniciados, a viver o resto do tempo na companhia dos deuses. Falaremos desse jeito, Cebete, ou de outra forma?

Assim mesmo, por Zeus, respondeu Cebete.

No caso, porém, conforme penso, de estar manchada e impura ao separar-se do corpo, por ter convivido sempre com ele, cuidado dele e o ter amado e estar fascinada por ele e por seus apetites e deleites, a ponto de só aceitar como verdadeiro o que tivesse forma corpórea, que se pode ver, tocar, beber, comer, ou servir para o amor; e se ela, que se habituou a odiar, temer e evitar o que é obscuro e invisível para os olhos, porém inteligível e apreensível com à filosofia: acreditas que uma alma nessas condições esteja recolhida em si mesma e sem mistura no momento em que deixar o corpo?

De forma alguma, respondeu.

Porém segundo penso, de todo em todo saturada de elementos corpóreos que com ela cresceram como resultado de sua familiaridade e contínua comunicação com o corpo, de que nunca se separou e de que sempre cuidara.

Sem dúvida.

Então, meu caro, terás de admitir que tudo isso é espesso, terreno e visível. A alma, com essa sobrecarga, torna-se pesada e é de novo arrastada para a região visível, de medo do Invisível – o Hades, como e diz – e rola por entre os monumentos e túmulos, na proximidade dos quais têm sido vistos fantasmas tenebrosos, semelhantes aos espectros dessas almas que não se libertaram puras de corpo e que se tornaram visível.

É muito possível, Sócrates, que seja assim mesmo.

Sim, é muito possível, Cebete, e também que essas almas não sejam dos bons, porém dos maus, que se veem obrigadas a vagar por esse lugares, como castigo de sua conduta durante a vida, que fora péssima. E assim ficam a vagar, até que o apetite do elemento corporal a que sempre estão ligadas volte a prendê-las noutros corpos.

Como é natural, voltam a ser aprisionadas em naturezas de costumes iguais aos que elas praticaram em vida.

A que naturezas te referes, Sócrates?

É o seguinte: as que eram dadas à glutonaria, ao orgulho ou à embriaguez desbragada, entram naturalmente nos corpos de asnos e de animais congêneres. Não te parece?

Falas com muita propriedade.

As que cometeram injustiças, a tirania ou a rapina, passam para a geração dos lobos, dos açores e dos abutres. Para onde mais podemos dizer que vão as almas dessa natureza?

Não há dúvida, respondeu Cebete; é para esses corpos que elas vão.

E não é evidente, continuou, que o mesmo se passa com os demais, por se orientarem todas elas no sentido de suas próprias tendências?

É claro, observou; nem poderia ser de outra maneira.

Logo, disse, os mais felizes e que vão para os melhores lugares são os que praticam a virtude cívica e social que dominamos temperança e justiça, por força apenas do hábito e da disposição própria, sem a participação da filosofia e da inteligência.

Por que serão esses os mais felizes?

Por ser natural que passem para uma raça sociável e mansa, de abelhas, vespas ou formigas, ou até para a mesma raça, a humana, a fim de gerarem homens moderados.

Sem dúvida.

Para a raça dos deuses não é permitido passar os que não praticaram a Filosofia nem partiram inteiramente puros, mas apenas os amigos da Sabedoria. É por isso, meus caros Símias e Cebete, que os verdadeiros filósofos se acautelam contra os apetites do corpo, resistem-lhes e não se deixam dominar por eles; não têm medo da pobreza nem da ruína de sua própria casa, como a maioria dos homens, amigos das riquezas, nem temem a falta de honrarias e a vida inglória, como se dá com os amantes do poder e das distinções. Não é essa a razão de se absterem de tudo?

De fato, Sócrates; nada disso lhes ficaria bem, falou Cebete.