Não, por Zeus, retorquiu. Por isso mesmo, Cebete, todos os que cuidam da alma e não vivem simplesmente para o culto do corpo, dizem adeus a tudo isso e não seguem o caminho dos que não sabem para onde vão. Convencidos de que não devemos fazer nada em contrário à Filosofia nem ao que ela prescreve para libertar-nos e purificar-nos, voltam-se para esse lado, seguindo na direção por ela aconselhada.
De que modo, Sócrates?
Vou dizer-te, respondeu. Estão perfeitamente cientes os amigos da Sabedoria, que quando a Filosofia passa a dirigir-lhes a alma, esta se encontra como que ligada e aglutinada ao corpo, por intermédio do qual é forçada a ver a realidade como através das grades de um cárcere, em lugar de o fazer sozinha e por si mesma, porém atolada na mais absoluta ignorância. O que há de terrível nesse liames, reconhece-o a Filosofia, é consistirem nos prazeres e ser próprio prisioneiro quem mais coopera para manietar-se. Como disse, os amigos da Sabedoria estão cientes de que, ao tomar conta de sua alma em tal estado, a Filosofia lhe fala com doçura e procura libertá-la, mostrando-lhe quão cheio de ilusões é o conhecimento adquirido por meio dos olhos, quão enganador o dos ouvidos e dos mais sentidos, aconselhando-a a abandoná-los e a não fazer uso deles se não só o necessário, e a recolher-se e concentrar-se em si mesma e só a acreditar em si própria e no que ela em si mesma aprender da realidade em si, e o inverso: a não aceitar como verdadeiro tudo o que ela considerar por meios que em cada caso se modificam, pois as coisas desses gênero são sensíveis e visíveis, ao passo que é inteligível e invisível o que ela vê por si mesma. Convencida de que não deve opor-se a semelhante libertação, a alma do verdadeiro filósofo abstém dos prazeres, das paixões e dos temores, tanto quanto possível, certa de que sempre que alguém se alegra em extremo, ou teme, ou deseja, ou sofre, o mal daí resultante não é o que se poderia imaginar, como seria o caso, por exemplo, de adoecer ou vir a arruinar-se por causa das paixões: o maior e o pior dos males é o que não se deixa perceber.
Qual é, Sócrates? perguntou Cebete.
É que toda alma humana, nos casos de prazer ou de sofrimento intensos, é forçosamente levada a crer que o objeto causador de semelhante emoção é o que há de mais claro e verdadeiro, quando, de fato, não é assim. De regra, trata-se de coisas visíveis, não é isso mesmo?
Perfeitamente.
E não é quando passa por tudo isso que a alma se encontra mais intimamente presa ao corpo?
Como assim?
Porque os prazeres e os sofrimentos são como que dotados de um cravo com o qual transfixam a alma e a prendem ao corpo, deixando-a corpórea e levando-o a acreditar que tudo o que o corpo diz é verdadeiro. Ora, pelo fato de ser da mesma opinião que o corpo e de se comprazer com ele, é obrigada, segundo penso, a adotar seus costumes e alimentos, sem jamais poder chegar ao Hades em estado de pureza, pois é sempre saturada do corpo que ela o deixa. Resultado: logo depois, volta a cair noutro corpo, onde cria raízes como se tivesse sido semeada nele, ficando de todo alheia da companhia do divino, do que é puro e de uma só forma.
É muito certo o que disseste, observou Cebete.
Essa é a razão, Cebete, de serem temperantes e corajosos os verdadeiros amigos do saber, não pelo que imagina o povo. Ou achas que sim?
Eu? De forma alguma.
Não, de fato; a alma do filósofo não raciocina desse jeito nem pensa que a filosofia deva libertá-la, para, depois de livre, entregar-se de novo aos prazeres e às dores e voltar a acorrentar-se, deixando írrito seu esforço anterior e como que empenhada em fazer o inverso do trabalho de Penélope em sua teia. Ao contrário: alcançando a calmaria das paixões e guiando-se pela razão, sem nunca a abandonar, contempla o que é verdadeiro e divino e que paira acima das opiniões, certa de que precisará viver assim a vida toda, para depois da morte, unir-se ao que lhe for aparentado e da mesma natureza, liberta das misérias humanas. Não é de admirar, Símias e Cebete, que uma alma alimentada desse jeito e com semelhante ocupação não tenha medo de desmembrar-se quando se retirar do corpo, e de ser dispersada pelos ventos, dissipando-se do todo, sem vir a ficar em parte alguma.