Ao ouvi-los falar dessa maneira, todos nós nos sentimos desagradavelmente impressionados, conforme depois confessamos a nós mesmos; firmemente convencidos como ficáramos, ante os argumentos anteriores, as palavras de agora como que nos deixavam inquietos e nos levavam outra vez a duvidar, tanto com relação ao que já fora dito como ao que ainda restava por dizer. Ou éramos maus juízes ou o assunto não admitia prova.
Equécrates – Pelos deuses, Fedão! Compreendo o que se passou convosco, pois agora mesmo, perguntei-me em que argumento poderemos confiar daqui por diante, se o que Sócrates acabou de desenvolver, com ser tão convincente, perdeu de todo o crédito? É maravilhosa a atração que sobre mim sempre exerceu, e ainda exerce, a doutrina de que nossa alma é uma espécie de harmonia. O que acabaste de expor me fez lembrar que até ao presente eu a aceitava. Mas agora necessito de novos argumentos para convencer-me de que a alma não morre juntamente com o corpo. Dize logo, por Zeus, de que modo Sócrates prosseguiu na sua argumentação? Porventura revelou desânimo, como disseste ter acontecido com todos vós, ou, pelo contrário, defendeu a sua opinião com a serenidade habitual? Foi completa ou falha nalgum ponto sua defesa? Conta-nos tudo com a maior exatidão possível.
Fedão – Em verdade, Equécrates, por mais que antes eu tivesse admirado Sócrates, nunca me senti tão arrebatado naquele instante. Não é de espantar que um homem do seu estofo pudesse sair-se bem em semelhante conjuntura. Mas o que nele, primeiro de tudo, me admirou ao extremo foi a maneira delicada, cordial e deferente com o que acolheu as objeções dos moços; depois, a sagacidade com que observou o efeito de suas palavras sobre nós e, por último, como soube curar-nos: de fugitivos e derrotados, fez-nos voltar e concitou-nos a segui-lo, para considerarmos junto o argumento.
Equécrates – De que modo?
Fedão – Vou te dizer como foi. Aconteceu que eu me achava, justamente à sua direita, num banquinho ao pé do catre, ficando ele num plano muito mais alto. Afagando-me a cabeça e abarcando com a mão os cabelos que me cobriam a nuca – pois sempre que se lhe oferecia ocasião graceja a respeito de minha cabeleira – me disse: Decerto é amanhã, Fedão, que vais pôr abaixo esta bela cabeleira?
Penso que sim, Sócrates, respondi.
Não, se me aceitares um conselho.
Que devo, então, fazer? Perguntei.
Hoje mesmo, disse, cortarei a minha, como farás com a tua, se nosso argumento vier a morrer e nos revelarmos incapazes de lhe dar lume e vida. De minha parte, se eu estivesse em teu lugar e o argumento me escorregasse por entre os dedos, faria um juramento à feição dos Argivos, de não deixar crescer os cabelos enquanto não vencesse em luta franca a proposição de Símias e Cibete.
Mas, como se costuma dizer, objetei-lhe, contra dois nem Hércules aguenta.
Então, chama-me em teu auxílio, enquanto é dia; serei o teu Iolau.
Bem, chamarei, lhe respondi; porém não na qualidade de Herácles: Iolau é que vai chamar Herácles em seu auxílio.
Tanto faz, me disse.