Fédon 92a-95a — Exame da concepção de Símias

Então, falou Sócrates: No entanto, forasteiro de Tebas, é o que terás de fazer, se continuares a dizer que a harmonia é algo composto, e a alma, uma espécie de harmonia resultante da tensão dos elementos constitutivos do corpo. Pois decerto não te permitirás afirmar que a harmonia, sendo um composto, é anterior aos elementos de que é formada. Ou afirmarás isso mesmo?

De forma alguma, Sócrates, respondeu.

E não percebes, continuou, que é justamente o que se dá ,quando declaras que a alma existia antes de ingressar no corpo do homem e de lhe assumir a forma, porém é composta de elementos que até então não existiam? Harmonia não é o que afirmas em tua comparação; ao contrário: primeiro existem a lira, as cordas e os sons, sem nenhuma harmonia. Esta é a última a formar-se, como é também a que desaparece mais cedo. De que modo porás em consonância esta asserção com o que disseste antes?

Não há jeito, respondeu Símias.

No entanto, prosseguiu, se é preciso haver consonância, é quando se trata de harmonia.

Sem dúvida, observou Símias.

Tuas proposições são desarmônicas, disse. Por conseguinte, qual delas escolhes: a de que aprender é recordar ou a de que a alma é a harmonia?

Sobre todos os pontos, Sócrates, eu prefiro a primeira, porque a outra foi aceita sem demonstração, por parecer-me verossímil e algum tanto conveniente, razão de admiti-la a maioria dos homens. No entanto, estou certo de que as demonstrações nessas comparações não passam de impostura, capazes de iludir-nos se não tomarmos as devidas precauções, em geometria com em tudo mais. Mas o argumento relativo ao conhecimento e à reminiscência se baseia num princípio digno de aceitação, pois foi asseverado que nossa alma existe antes mesmo de ingressar no corpo, como o exige tua relação com a essência daquilo que denominamos O que é. Ora, essa proposição, conforme estou convencido, foi por mim adotada com argumentos muito sólidos. Daí, ver me forçado, ao que parece, a não permitir que nem eu, nem ninguém afirme que a alma é harmonia.

E o seguinte, Símias, perguntou, como te parece: és de opinião que a harmonia, ou qualquer outro composto, poderá proceder de maneira diferente da dos elementos se que é feito?

De forma alguma.

Como também não poderá, segundo penso, fazer ou sofrer o que quer que seja que não façam ou sofram aqueles elementos.

Concordou.

É que não compete à harmonia conduzir os elementos que a compõem, porém segui-los.

Declarou-se também de acordo.

Logo, de nenhum jeito a harmonia poderá mover-se ou soar, ou fazer seja o que for em contrário dos elementos?

Não compreendo, disse.

Pois não é certo que se ela estiver mais harmonizada ou em grau maior, a admitirmos que seja possível semelhante hipótese, tanto mais harmonizada será e em maior grau, e se estiver menos e em grau menor, será menos harmonizada e em grau menor?

Perfeitamente.

E da alma, justificar-se-á dizer a mesma coisa, que revela diferença, embora mínima, em ser mais alma e em grau maior do que outra, ou menos alma e em grau menor, nisso, justamente, de ser alma?

Nunca dos nuncas, respondeu.

Passemos adiante, continuou, por Zeus! De uma alma não dizemos que é dotada de razão e de virtude, e que é boa, e de outra, pelo contrário, que é destruída de senso, viciosa e má? E não estão certos os que afirmam semelhante proposição?

Certíssimo, respondeu.

Sendo assim, os que admitem que a alma é harmonia, como explicarão a existência dessas qualidades na alma, a saber, a virtude e o vício? Dirão, porventura, que se trata de uma harmonia ou desarmonia de outra espécie? Que uma delas, a boa, foi harmonizada e que, por ser harmonia, possui em si mesma essa modalidade de harmonia, enquanto a outra, por não estar harmonizada, carece absolutamente de harmonia?

Não sei o que responda, falou Símias; porém quero crer que o adepto dessa doutrina se expressaria mais ou menos nesses termos.

No entanto, num ponto já ficamos de acordo, continuou: que nenhuma alma é mais alma ou menos alma do que outra, o que equivale a aceitar que nenhuma harmonia poderá ser mais harmonia ou maior – ou o inverso – do que outra, não é verdade?

Perfeitamente.

Ora, se a harmonia não admite graus, não se concebe, também, que possa ficar mais ou menos harmonizada. Não é isso mesmo?

Certo.

Mas a harmonia que não for nem mais harmonizada nem menos, poderá participar em grau diferente da harmonia, ou sempre o fará na mesma proporção?

Na mesma.

Sendo assim, a alma, uma vez que não será isso mesmo, alma, nem mais nem menos, do que outra, também não poderá ser mais ou menos harmonizada.

Exato.

Donde vem que não participará em grau maior nem da harmonia nem da desarmonia.

Não, de fato.

Nessas condições, ainda, como poderia uma alma participar em grau maior ou menor do que outra, da virtude ou do vício, se o vício for desarmonia e a virtude, harmonia?

Não é possível.

Logo, Símias, se bem considerarmos, nunca a alma poderá participar do vício, se ela for, de fato, harmonia, pois a harmonia, evidentemente, sendo sempre de maneira perfeita o que é, a saber, harmonia, não participará da desarmonia.

Não, de fato.

Como não poderá a alma, por ser totalmente alma, participar do vício.

Como o poderia, de acordo com o que dissemos antes?

Como decorrência, portanto, de nosso argumento anterior, as almas de todos os seres vivos são igualmente boas, se forem, por natureza, igualmente almas.

É também o que eu penso, Sócrates, respondeu.

E parecer-te-ia também certa a explicação, continuou, e que nosso argumento viria a parar nisso, se fosse verdadeira a hipótese de que a alma é harmonia?

De forma alguma, respondeu.

E agora, falou, de tudo o que há no homem, não dirás ser a alma, justamente, que domina, máxime quando dotada de prudência?

É o que diria, sem dúvida.

De que modo: condescendendo com os apetites do corpo ou, de preferência, opondo-lhes resistência? O que digo é o seguinte: se o corpo sente calor ou sede, ela o puxa para trás, para não beber, e se tem fome, para não comer, e numa infinidade de situações como essa vemos a alma opor-se às paixões do corpo. Ou não?

Perfeitamente.

Por outro lado, não admitimos antes que, no caso de ser harmonia, nunca poderia ficar a alma em dissonância com as tensões, os relaxamentos e as vibrações de seus elementos componentes, e que, pelo contrário, ela sempre os seguiria, sem nunca dirigi-los?

Admitimos isso, por que não?

E agora? O que verificamos não é que ela faz precisamente o contrário, dirigindo todos os elementos de que a imaginamos composta, opondo-se-lhes em quase tudo durante a vida inteira e dominando-os de mil modos, às vezes por meio de castigos violentos e dolorosos, do âmbito da ginástica e da medicina, às vezes por meios suasórios, com ameaças ou admoestações, em franco diálogo com os apetites, as cóleras e os temores? É como imagina Homero isso mesmo na Odisseia quando diz que Odisseu.

Bate, indignado, no peito e a si próprio desta arte se exprime:

Sê, coração, paciente, pois vida mais baixa e mesquinha já suportaste.

Pensas, então, que, ao compor essa passagem, ele considerava a alma uma espécie de harmonia, capaz de ser dirigida pelas disposições do corpo, ou o contrário, própria para dirigi-lo e dominá-lo, por ser algo, justamente, muito mais divino do que uma simples harmonia?

Por Zeus, Sócrates, é também o que eu penso.

Por conseguinte, meu caro, de jeito nenhum ficará bem para nós afirmar que a alma é uma espécie de harmonia. Pois desse modo, ao que parece, não nos poríamos nem de acordo com Homero, o divino poeta, nem mesmo conosco.

É muito certo, disse.