De seguida, continuou, já cansado de considerar as coisas, houve que era preciso precatar-me para não acontecer comigo o que se dá com as pessoas que observam e contemplam o Sol quando há eclipse: por vezes perdem a vista, se não olham apenas para a imagem dele na água ou nalgum meio semelhante. Pensei nessa possibilidade e receei ficar com alma inteiramente cega, se fixasse os olhos nas coisas e procurasse alcançá-las por meio de um dos sentidos. Pareceu-me aconselhável acolher-me ao pensamento, para nele contemplar a verdadeira natureza das coisas. É muito provável que minha comparação claudique um pouco, pois estou longe de admitir que quem considera as coisas por meio do pensamento só contemple suas imagens, o que não se dá com que as vê na realidade. De qualquer modo, meu caminho foi esse. Em cada caso particular, parto sempre do princípio que se me afigura mais forte, considerando verdadeiro o que com ele concorda, ou se trate de causas ou do que for, e como falso o que não afina com ele. Vou expor-te com maior clareza minha maneira de pensar, pois quer parecer-me que não a apreendeste muito bem.
Não muito, por Zeus, respondeu Cebete.
No entanto, prosseguiu, o que eu digo não é novo, mas o que sempre afirmei, tanto noutras ocasiões como em nossa argumentação recente. Vou tentar mostrar-te a natureza da causa por mim estudada, voltando a tratar daquilo mesmo de que tenho falado toda a vida, para, de saída, admitir que existe o belo em si, e o bem, e o grande, e tudo o mais da mesma espécie. Se me aceitares esse ponto e concordares que existem, tenho esperança de mostrar-te a causa e provar a imortalidade da alma.
Admite que já concedi tudo, falou Cebete, para não atrasares ainda mais tua exposição.
Então, considera o que se segue, continuou, para ver se estás de acordo comigo. O que me parece é que se existe algo belo além do belo em si, só poderá ser belo por participar do belo em si. O mesmo afirmo de tudo o mais. Admites essa espécie de causa?
Admito, respondeu.
Então, já não compreendo, continuou, as outras causas, de pura erudição, nem consigo explicá-las. E se, para justificar a beleza de alguma coisa, alguém me falar de sua cor brilhante, ou da forma, ou do que quer que seja, deixo tudo o mais de lado, que só contribui para atrapalhar-me, e me atenho única e simplesmente, talvez mesmo com uma boa dose de ingenuidade, ao meu ponto de vista, a saber, que nada mais a deixa bela senão tão só a presença ou comunicação daquela beleza em sim, qualquer que seja o meio ou caminho de se lhe acrescentar. De tudo o mais não faço grande cabedal; o que digo é que é pela beleza em si que as coisas belas são belas. Na minha opinião, essa é a maneira mais certa de responder, tanto a mim mesmo como aos outros. Firmando-me nessa posição, tenho certeza de não vir a cair e de que tanto eu como qualquer pessoa em idênticas circunstâncias poderá responder com segurança que é pela beleza que as coisas belas são belas. Não te parece?
Sem dúvida.
Como é por meio da grandeza que o grande é grande e o maior é maior, e pelo da pequenez que o pequeno é pequeno.
Certo.
Logo, também não concordarias com que dissesse que um homem é maior do que outro uma cabeça, nem que é menor é também uma cabeça menor do que o primeiro, porém persistirias na defesa de tua proposição, de que na tua maneira de pensar tudo o que é grande só pode ser grande por causa da grandeza, nada mais, sendo esta, a grandeza, que deixa grandes as coisas, como o pequeno só será pequeno por causa da pequenez, vindo a ser isto mesmo, a pequenez, que deixa pequeno o pequeno, de medo, quero crer, no caso de afirmares que um homem é maior ou menor do que o outro uma cabeça, que pudesse alguém objetar-te, primeiro, que é pela mesma coisa que o maior é maior e o menor é menor; depois, que, sendo pequena a cabeça, é por meio dela que o maior é maior, verdadeiro disparate: vir a ser alguém grande por causa do que é pequeno. Não te arreceias disso?
Sem dúvida, respondeu rindo Cebete.
Como também recearias dizer, continuou, que dez e dois mais do que oito, sendo essa a razão de ultrapassá-lo, não pela quantidade e por causa da quantidade, como o cúbito maior é uma metade maior do que o simples, não por causa da grandeza. O perigo é o mesmo.
Perfeitamente, respondeu.
E então? No caso de uma unidade ser acrescentada a outra, não terás medo de dizer que essa adição foi a causa de formar-se o dois, ou, na hipótese de ser a unidade cortada ao meio, que foi a divisão? E não protestarias em altas vozes que não sabes como uma coisa possa transformar-se noutra, a não ser pela participação da essência própria da natureza que ela própria participa e que, no caso concreto da geração do dois, não saberás informar outra causa se não for a participação da dualidade? Dessa dualidade é que terá de participar o que tiver de ficar dois, como participará da unidade, tudo o que vier a ser um. Quanto às divisões e acrescentamentos e demais sutilezas do mesmo gênero, mandarás todas elas passear, deixando o cuidado da resposta a quem for mais sábio do que tu. Quanto a ti, de medo, como se diz, da própria sombra e de tua inexperiência, e firmado naquele pressuposto seguríssimo, responderias daquele jeito. E no caso de investir o adversário contra tua própria tese, não lhe darias atenção nem responderias a ele sem primeiro verificares se as consequências de seu postulado são dissonantes ou harmônicas. E na hipótese de fundamentar tua proposição, fá-lo-ias da mesma forma, com admitir um novo princípio, que se te afigurasse mais valioso, até conseguires resultado satisfatório. Ao contrário dos disputadores, não confundireis com suas consequências o princípio em discussão, caso quisesses alcançar alguma realidade. Com esta, ao que parece, é que nenhum deles se preocupa no mínimo. Com todo o seu saber, o que fazem é baralhar tudo, muitos anchos de si mesmos. Tu, porém, se te incluis entre os filósofos, farás o que te disse.
Falaste a pura verdade, disseram a um só tempo, Símias e Cebete.
Equécrates – Por Zeus, Fedão, nem lhe seria possível expressar-se de outro modo, pois me parece de clareza meridiana semelhante explanação, até mesmo para quem for dotado de parco entendimento.
Fedão – Perfeitamente, Equécrates; todos os circunstantes foram desse mesmo parecer.
Equécrates – Que é também o de todos nós que não participamos do colóquio e te ouvimos neste momento.
E depois disso, o que disseram?
Fedão – Segundo creio, depois de lhe concederem esse ponto e de admitirem a existência real das ideias e que é da sua participação que as diferentes coisas recebem determinação particular, perguntou Sócrates o seguinte: Se é assim que falas, continuou, quando dizes que Símias é maior do que Sócrates porém menor do que Fedão, não equivale isso a dizer que em Símias se encontram ambas: grandeza e pequenez?