(Excertos de Rachel Gazolla de Andrade, “Platão, o Cosmo, o Homem e a Cidade”)
No Fédon, um diálogo que, segundo Festugière, é um estudo sobre a filosofia como meditação sobre a morte1, Sócrates tenta explicar aos seus amigos seu destemor diante do cumprimento da sentença condenatória que se aproxima. Para tanto, aborda a questão da alma após a morte e, num primeiro momento, com a concordância de Cebes (70d), reafirma o que o grego tradicionalmente conhece de seus poetas antigos: que as almas dos defuntos vão para o Hades, renascendo posteriormente dos mortos para os vivos; ou que as almas se dissipam quando separadas do corpo, como fumaça, sendo mortais; ou ainda, nas conhecidas concepções órfica e dionisíaca, que a alma é apartada do corpo para a purificação (kátharsis), quer durante a vida, nos rituais (dionisismo), quer quando o corpo morre e a alma, livre dessa prisão, ascende à sua divindade (orfismo). Diante dessas primeiras afirmações do diálogo, é de notar-se a pronta aceitação de Cebes e de Símias que não cogitam, aparentemente, em discordar dessas crenças tradicionais, arraigadas na mentalidade grega, deixando claro que, desde há muito, corpo e alma são entes considerados separadamente, apesar de se apresentarem unidos para formar a duplicidade sômapsychê do ser humano.
Sócrates utiliza-se dessas tradições num primeiro momento do diálogo para poder retomar sua fala sobre a alma e o conhecimento humano (67a,s) numa vertente reflexiva contrastante com as noções tradicionais e na qual ela é estabelecida de modo mais complexo, pois sua separação do corpo é denotativa de sua pureza (81a) e de sua imortalidade, bem como do conhecimento puro que ela possibilita, de acordo, diz Sócrates, com o que dizem os filósofos. É esta, aliás, a abertura para pensar a morte do corpo e a vida da alma, simbolizadoras do movimento do conhecimento, apontada por Festugière. Diante das considerações socráticas sobre tais atributos da alma, novamente nenhum espanto é esboçado pelos presentes. Na verdade, é fundamentado na visão órfica da pureza da alma e da impureza do corpo que Sócrates expõe seus primeiros argumentos sobre a alma, e um leitor inadvertido pode entender tais exposições como aceitas pelo próprio filósofo. No entanto, mais do que definir a sua própria concepção de alma (o que só será efetivado a partir de 97a), Platão/Sócrates quer explicitar o significado da morte como o início do verdadeiro conhecimento, aceitando, a nosso ver paradigmáticamente, as colocações do orfismo e do dioni-sismo, num primeiro momento. De fato, ele afirma:
“Sócrates: …Mas a purificação não é, de fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a evitá-lo… a viver… isolada e por si mesma, inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele a prendiam?
Símias: É exatamente isso.
Sócrates: Ter uma alma desligada e posta à parte do corpo não é esse o sentido da palavra ‘morte’…? E os que mais desejam essa separação, os únicos que a desejam não são por acaso aqueles que, no bom sentido do termo, se dedicam à filosofia? O exercício próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?… Assim, Símias, em verdade estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia” (67c,e – grifo nosso).
Há um mau sentido das palavras para falar-se em morte e em filosofia? Sim. Sócrates muda a perspectiva da separação corpo-alma trazendo com ela sua própria concepção de filósofo, e teremos ocasião de mostrar que Platão não vê com bons olhos os chamados filósofos de sua época (cf. República). Essa preparação dos interlocutores para a reflexão propriamente filosófica da alma acaba por abranger as teorias vigentes, religiosas ou não, como fica claro na argumentação de Cebes e Símias, e na do próprio Sócrates, anteriores à definição da alma como um ser que fundamenta o conhecimento. Platão deixa que Cebes exponha seus argumentos sobre o corpo e a alma, que são logicamente plausíveis a qualquer grego, desde que coloque como ponto de partida de seu discurso a visão cronológica da geração e corrupção daphysis. Cebes tenta mostrar o porquê da possibilidade da alma vir a morrer, senão junto com o corpo, ao menos algum tempo depois dele, utilizando-se de uma concepção de physis provavelmente conhecida do séc. IV aC e proveniente dos discípulos das escolas jônicas.
Para que Sócrates possa chegar a expor o que realmente pretende, isto é, a alma como imortal e como potência que raciocina, várias hipóteses argumentativas além daquelas de Cebes são resgatadas dos textos dos antigos poetas, dos primeiros sábios e das seitas órfica e dionisíaca. Conforme demonstra o mito do destino das almas, Sócrates o apresentará ao final do diálogo no sentido ético-pedagógico (e não é assumido no sentido religioso, como parte da tradição interpretativa incorporou), com o intuito de finalizar a demonstração da imortalidade da alma na qual vinha se exercitando. A concepção órfica desse mito é inegável, e não será a única vez que crenças míticas e religiosas serão usadas nos lógoi platônicos, assim como as tradições e saberes diversos que rodeiam as discussões atenienses, sempre buscando ultrapassá-los. É necessário que estejamos atentos a essa “técnica” platônica de exposição, cuidando de discernir aquilo que serve ao filósofo para sua melhor demonstração, como se fosse uma espécie de alavanca para sua argumentação. Talvez nunca possamos saber ao certo se as colocações órficas, tão semelhantes estruturalmente às platônicas mas fundadas em outro solo, podem ter influenciado esse lógos que, enquanto sophía, afasta-se dessa crença. A pergunta que fica sem resposta é se Platão utilizou-se do orfismo como um paradigma para sua reflexão ou se, de fato, sua filosofia guarda fortes influências órficas porque ele foi um órfico. Ficamos, por ora, com a primeira hipótese.