Fedro 237a-241d — Primeiro dicurso de Sócrates

SÓCRATES: – A vós invoco, Musas! Pouco importa que vos chameis “sonoras” por causa da doçura do vosso canto ou que esse epíteto vos venha do musical povo dos lígios! Auxiliai-me no discurso que este ótimo homem me obriga a fazer, para que seu amigo, que já antes se lhe afigurava sábio, seja considerado mais sábio ainda!

Pois bem: houve outrora um rapaz belíssimo, ou melhor, houve um mancebo que tinha grande número de adoradores. Um destes era muito esperto. Ele, que realmente amava o rapaz como todos os outros, convenceu-o de que não o amava. Ao tentar conquistá-lo, esforçou-se por persuadi-lo de que antes se devem conceder favores ao que não ama do que ao apaixonado. Um dia dirigiu-lhe o seguinte discurso: em todas as coisas, meu rapaz, para que se tome uma resolução sábia é mister saber sobre o que se delibera, pois, de outro modo, certamente nos enganamos. A maioria dos homens não nota, entretanto, que ignora a essência das coisas. Isso porém não os impede de acreditar erroneamente que a conhecem; segue-se daí que no começo de uma pesquisa não definem as suas opiniões, acontecendo depois o que era esperado: tais pessoas não concordam consigo mesmas, nem umas com as outras. Evitemos, pois, esse defeito que censuramos nos outros. Como se trata de saber se é melhor ter amizade com alguém que ama do que com alguém que não ama, começaremos assim estabelecendo uma definição do amor, da sua natureza e dos efeitos, definição que deverá satisfazer a opinião de nós ambos; havemos de nos referir sempre a esses princípios, e, reduzindo desse modo toda a discussão, examinaremos se o amor traz vantagens ou prejuízos.

É evidente que o amor é desejo. Sabemos, porém, que os que não amam também desejam os objetos que são belos. Como, pois, distinguiremos entre o que ama e o que não ama? Devemos, além disso, examinar o seguinte: em cada um de nós há dois princípios que nos governa e conduzem, e nós os seguimos para onde nos levam: um é o desejo inato do prazer, outro a opinião que pretende obter o que é melhor. Essas duas tendências que existem dentro de nós concordam por vezes, em outras entram em conflito, por vezes vence uma e por vezes a outra. Ora, quando a tendência que se inspira na razão é a que vence, conduzindo-nos ao que é melhor, chama-se a isso temperança; quando, pelo contrário, o desejo nos arrasta sem deliberação para os prazeres, e é ele que predomina em nós, isso se chama intemperança. A palavra intemperança, contudo, tem vários sentidos, é compreendida de muitas maneiras, e o sentido que se tornou característico faz com que o homem que possui essa tendência receba o nome correspondente, e não é belo nem honorífico recebê-lo. O desejo que se relaciona com o comer e que, como os outros desejos, suplanta a noção do que é melhor, chama-se “glutoneria”. Ela confere àquele que a possui, o nome correspondente de “glutão”. Quando é o desejo da bebida que exerce a sua tirania, sabe-se qual o nome vergonhoso que se dá àqueles que se abandonam à bebida. Enfim, o mesmo acontece com todos os outros desejos dessa família. Já se torna quase manifesto a que espécie de desejo foi dedicada a exposição que antecedeu. Entretanto, creio que devo explicar-me mais claramente. Quando o desejo, que não é dirigido pela razão, esmaga em nossa alma o desejo do bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza promete, e quando ele se lança, com toda a força que os desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível. Esta força todo-poderosa, irresistível, chama-se Eros ou Amor. Mas, meu caro Fedro, não te parece que eu estou falando sob uma inspiração divina?

FEDRO: – Sim, caro Sócrates, uma eloquência desacostumada se assenhoreou de ti.

SÓCRATES: – Então ouve em silêncio! Na verdade, este lugar parece ser divino. Não deves admirar-te se durante o discurso as ninfas tomarem posse de mim, pois o que estou dizendo já se assemelha muito a um ditirambo.

FEDRO: – Tens toda a razão.

SÓCRATES: – E a culpa é tua. Ouve agora o resto, pois pode ser que a inspiração se acabe! Isso, porém, deixemos ao arbítrio da divindade. Voltemos ao discurso dirigido ao rapaz.

Muito bem, meu amigo! Já ficou bem explicado o tema da nossa discussão. Já definimos a sua natureza. Vamos adiante e, sem perder de vista os nossos princípios, examinemos as vantagens e os inconvenientes que advirão provavelmente a alguém que concede favores a quem ama e a quem não ama.

Naturalmente, um homem governado pelo desejo e escravo da volúpia procurará no seu amado o máximo do prazer. Ora, o apaixonado gosta de tudo o que não lhe opõe resistência e odeia tudo o que lhe é superior ou igual. Por isso, o amante verá com impaciência um superior ou um igual no seu amado e fará tudo para que lhe seja inferior e menos perfeito. Ora, o ignorante é inferior ao sábio, o covarde ao corajoso, o incapaz de falar ao orador, o tolo ao inteligente. Quando semelhantes deficiências se instalam no espírito do amado, ou quando lhe são próprias por natureza, o amante necessariamente se alegrara e procurará acentuar tais defeitos, pois do contrário correrá o risco de perder seus prazeres momentâneos. É forçoso que o amante apaixonado inveje o amado, impedindo-lhe muitas convivências úteis que poderiam fazer dele um bom homem, e causando-lhe assim um grande prejuízo. O maior prejuízo, porém, que o apaixonado acarreta ao objeto do seu amor é privá-lo daquilo que daria pleno desenvolvimento à sua inteligência, isto é, a divina filosofia, da qual o amante necessariamente afasta o amado. Ele tem medo de ser desprezado pelo rapaz, e é claro que fará tudo quanto puder para que este se torne um perfeito ignorante e em tudo se oriente pelo pensar dele, amante. Essa situação do amado é, para o amante, agradável, mas nociva para o próprio rapaz. Portanto, do ponto de vista espiritual o amante apaixonado nem é bom tutor nem um companheiro útil.

Passemos agora ao corpo, à sua compleição e aos cuidados que se devem ter com ele. Qual é essa compleição?Que cuidados dará a ele ao corpo daquele de quem é senhor?

Observaremos que o apaixonado vai procurar um efeminado e não um forte; que deseja possuir um homem que não tenha crescido à luz do sol mas ao abrigo de uma sombra, um homem que não conheça trabalhos masculinos nem suores fortes, um homem acostumado a um gênero de vida algo impróprio do seu sexo, um homem que procura substituir as boas qualidades que lhe faltam por cores adornos exóticos. Tal fato é tão evidente que não vale a pena discuti-lo mais pormenorizadamente; mencionaremos apenas o ponto principal que a ele se prende. O aspecto de tal corpo na guerra e em outras situações sérias torna os inimigos corajosos, ao passo que os amigos, e também os próprios amantes, inevitavelmente temerão por ele. Isto, porém, é fato que não sofre dúvida e podemos abandonar o assunto.

Agora devemos examinar que vantagens e que prejuízos, no tocante à fortuna, nos oferecerão o convívio com o amante e sua proteção. Uma coisa é evidente para todos, e em primeiro lugar para o próprio amante: ele deseja, acima de tudo, que seu amado seja privado dos mais ambicionáveis, mais agradáveis e mais divinos bens. A esse homem convém que o amado perca o pai, a mãe, os parentes e os amigos, pois os considera como opositores e censores do gênero de convivência que a ele á mais agradável. Quando, porém, o amado possui uma fortuna em ouro ou em outros objetos de valor, afigurar-se-á ao amante que não é muito fácil conquistar o rapaz e, caso este se deixe conquistar, não será muito obediente. De tudo isso se conclui que o amante inveja o amado quando este recebe uma fortuna e alegra-se quando o mesmo a perde. O amante não deseja que o objeto do seu amor se case, que tenha filhos, que possua um lar, pois sua intenção é gozar, o mais longamente que puder, o seu prazer egoísta, o gozo do seu doce fruto.

Há muitos outros males, mas à maior parte deles um ente sobrenatural parece haver misturado algum momentâneo prazer. Assim, o lisonjeiro, por exemplo, é horrível monstro e traz grandes prejuízos, mas, simultaneamente, a natureza lhe conferiu certo atrativo que não deixa de ter seu encanto. Poder-se-ia chamar nociva também a uma prostituta, e o mesmo a várias outras criaturas duvidosas, e a costumes que proporcionam um prazer deleitoso, porém efêmero. O mesmo se dá com o apaixonado em relação com os seus amores. Ele não é apenas nocivo. Sua assiduidade o torna terrivelmente desagradável. Diz um velho provérbio que cada um gosta de conviver com os que são da sua idade. Segundo penso, a mesma idade conduz aos mesmos prazeres e essa semelhança engendra amizade. Mas, apesar disso, uma dessas convivências levada ao exagero resultará em saciedade também é coisa que todos consideram desagradável. Ainda mais evidente e desagradável é ela no que diz respeito à diferença da idade, sobretudo na companhia de um amante que a idade afasta daquele que ele ama. Se é velho, persegue o objeto do seu amor e não o larga nem durante o dia nem durante a noite; é aguilhoado pelo desejo intenso, sente prazer todas as vezes que vê o amado ou lhe ouve a voz, ou lhe toca, ou, enfim, o percebe por qualquer dos sentidos; com prazer se aproxima dele e incessantemente o acaricia. Mas que consolação e que divertimentos poderá dar ele ao amado, para que este, que tem de permanecer tanto tempo em sua companhia, não sinta desprazer? O moço está diante de um ser enrugado, afligido pelos achaques da velhice, e a isso se adicionam outras coisas que acompanham essa visão e que de fato só são suportadas com repugnância. Resguardado contra todos com desconfiança, fiscalizando no que faz e no que diz, ouve ainda do objeto amado, do seu apaixonado, elogios inconvenientes e exagerados, e também repreensões que seriam insuportáveis mesmo nos lábios de um homem sóbrio, mas quando se acrescentam à embriaguez não só são insuportáveis mas ofensivas, pois um homem desses usa expressões aborrecidas, despudoradas e atrevidas que causam mágoa, raiva, dor e desprazer. Pois bem: quando o amante está apaixonado, é desagradável é prejudicial; quando, porém, seu amor termina, ele se revela como homem indigno de confiança; trairá aquele que seduzira com promessas magníficas, com os seus juramentos e a sua devoção. Outrora, tratou de conservar o convívio de seu amado acenando-lhe com a esperança de grandes bens, porque a convivência em si era desagradável. Agora, porém, que chegou a ocasião de cumprir suas promessas, ei-lo transformado em outro homem sem que seu amado o tenha notado. Em seu íntimo, rendeu-se a outro soberano e guia, à ponderação e à sobriedade, abandonando o amor e a loucura. O amado, que agora espera gratidão pelos favores concedidos, lembra-lhe o que ambos faziam e diziam outrora, julgando falar ainda com o mesmo homem. Mas o amante tem vergonha de dizer que se tornou outro, e além disso é incapaz de cumprir as promessas e juramentos feitos sob o domínio da loucura da paixão. Como adquiriu juízo e sabedoria, não quer fazer o mesmo que antes, para não se tornar de novo semelhante ao que era em outro tempo. Em consequência disso se torna esquivo; o antigo amante perdeu seu amor, devido às circunstâncias; o caco caiu de outro modo, e o amante foge do amado, trocando-se os papéis. O outro, vendo-se na necessidade de persegui-lo, encoleriza-se contra ele e pragueja; não compreendeu, no começo, que não devia ter conhecidos favores ao homem outrora apaixonado e insensato, mas sim a quem, não se achando dominado pela paixão, soubesse proceder com juízo. Entregando-se ao apaixonado, abandonou-se a um homem sem palavra, de convívio desagradável, a um homem cheio de inveja, que só lhe causou desprazer, nocivo para a sua fortuna, para a sua educação física e, acima de tudo, para a sua educação espiritual, o mais estimável de todos os bens que existem ou poderão existir, tanto para os homens quanto para os deuses.

Eis, caro rapaz, o que é necessário ter em mente; devem saber que o amor de um homem apaixonado não provém de um sentimento benévolo, mas, como o apetite ao comer, da necessidade de satisfazê-lo.

“Como o lobo ama o cordeiro, ama o apaixonado o seu amado”.