Fedro 242b-259d — Segunda Parte

SÓCRATES: – Caro amigo! Quando quis atravessar o regato despertou em mim o “daimon” e manifestou-se o sinal costumeiro. Ele sempre me impede de fazer o que desejo. Pareceu-me ouvir uma voz que vinha cá de dentro e que não me permitia ir embora antes de oferecer aos deuses uma expiação, como se eu houvesse cometido alguma impiedade. Sou adivinho, mas não muito hábil; sou como os que não sabem bem ler e escrever: só faço adivinhações para mim mesmo. Agora vejo com clareza o meu pecado. Meu amigo! A alma tem o dom de profetizar. Já enquanto fazia o discurso senti certa perturbação. Para me exprimir como Ibico, tive medo de ganhar honra aos olhos dos homens cometendo um pecado contra os deuses. Mas agora percebo qual é a minha culpa.

FEDRO: – Que queres dizer?

SÓCRATES: – Trouxeste-me um discurso horrível, caro Fedro, e me obrigaste a fazer outro discurso horrível.

FEDRO: – Como assim?

SÓCRATES: – Um discurso tolo e, em certo sentido, ímpio. Pode haver coisa mais horrível?

FEDRO: – Por certo que não, se é verdade o que dizes.

SÓCRATES: – Pois então já não crês que Eros é filho de Afrodite, e como tal é deus?

FEDRO: – Sem dúvida. É o que diz a tradição.

SÓCRATES: – Mas tal fato não foi mencionado por Lísias nem no meu discurso, aquele que minha língua enfeitiçada pronunciou. Ora, se Eros é, como de fato é, um deus ou um ser divino, não poderá ser mau. Entretanto, os dois discursos que se fizeram a seu respeito referiam-se a ele como se o fosse. Esses discursos pecaram contra Eros. Além disso, a sua tolice é cômica, pois, embora não tenham dito nada de verdadeiro nem de aproveitável, enchem-se de importância porque conseguiram iludir alguns ingênuos e ganhar os seus aplausos. Eis por que, meu Fedro, é necessário que eu me penitencie. Ora, à disposição dos que pecaram contra a mitologia está uma antiga expiação que Homero não conhecia, mas que Estesícoro conhecia. Este perdeu a luz dos olhos por ter ofendido a Helena; mas, ao contrário de Homero, não ignorava a causa disso. Como amigo das Musas, ele a conhecia, e imediatamente escreveu estes versos:

“Não foi verdadeiro o teu discurso;
tu jamais entraste num navio
e tão pouco estiveste no castelo de Troia”.

Depois de ter completado a sua palinódia, foi-lhe restituída a vista. Eu, porém, serei mais sábio do que eles neste ponto. Antes que venha a sofrer pela ofensa feita a Eros tentarei fazer a minha palinódia, mas com a cabeça nua e não, como antes, embuçada.

FEDRO: – Nada poderias dizer que me fosse mais agradável, caro Sócrates.

SÓCRATES: – Bem vês agora, Fedro, a impudência com que foram proferidos esses dois discursos, o de há pouco assim como o que leste. Imagina que um homem honesto, de costumes civilizados, que ame ou tenha amado outrora um rapaz, nos ouça afirmar que os amantes contendem com os seus amados por causa de ninharias, que os invejam ou prejudicam. Esse homem julgaria estar ouvindo indivíduos que se criaram entre marinheiros e nunca conheceram um nobre amor. Um homem assim jamais concordaria com as censuras que dirigimos a Eros. Não te parece?

FEDRO: – Por Zeus, caro Sócrates! Talvez seja assim.

SÓCRATES: – Eu me envergonharia diante de tal homem. Além disso, tenho medo de Eros. Por este motivo, quero agora lavar com um discurso suave o ouvido cheio de água salgada. Aconselho também a Lísias que escreva tão cedo quanto possível um discurso declarando que, em igualdade de circunstâncias, antes se devem conceder favores ao que ama do que ao que não ama.

FEDRO: – Fica sossegado, que ele saberá disto. Se tu fizeres agora o elogio do amante, terei de obrigar Lísias a escrever um discurso no mesmo sentido.

SÓCRATES: – Confio nisso, enquanto permaneceres o que és.

FEDRO: – Então fala com toda a confiança!

SÓCRATES: – Mas onde está o rapaz para quem falei? Quero que ele ouça também isto, a fim de que não vá prestar favores inconsideradamente a alguém que não o ama.

FEDRO: – Esse rapaz está junto de ti sempre que o desejares.