Pois bem: os arremedos humanos da justiça e da sabedoria, e todas as outras qualidades da alma, não têm fulgor nas suas imagens terrestres e, observando-as com sentidos fracos, somente poucos, e com dificuldade, reconhecem, nessas imagens, o modelo daquilo que representam. Mas a beleza era visível em todo o seu esplendor quando, na corte dos bem-aventurados, deparávamos com o espetáculo ridente em que uns seguiam a Zeus e alguns entre nós a outros deuses. Iniciados nos mistérios divinos, nos os celebrávamos puros e livres, isentos das imperfeições em que mergulhamos nos curso ulterior do nosso caminho. A integridade, a simplicidade, a imobilidade, a felicidade eram as visões que a iniciação revelava ao nosso olhar, imersas numa pura e clara luz. Não tínhamos mácula nem tampouco contato com esse sepulcro que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha.
Perdoa-me ter sido tão longo… São lembranças dos passados esplendores que já não voltam!
Quanto à beleza – como te disse -, ela brilhava entre todas aquelas Ideias Puras, apesar de nossa prisão terrena, seu brilho ainda ofusca todas as outras coisas. A visão é ainda o mais sutil de todos as nossos sentidos. Não pode, contudo, perceber a sabedoria. Despertaria amores veementes se oferecesse uma imagem tão clara e nítida quanto as que podíamos contemplar para além do céu. Somente a beleza tem esta ventura de ser a coisa mais perceptível e arrebatadora. Aquele que não foi iniciado ou que se corrompeu, não se eleva com ardor para o além, para a beleza em si mesma.
Apenas conhece o que aqui se chama belo, e não adora aquilo que vê. Como um quadrúpede, dedica-se ao prazer sensual, tratando de unir-se sexualmente e de procriar filhos. Se for dado à intemperança, não terá medo nem vergonha de se entregar aos prazeres contra a natureza. O que foi iniciado há pouco, e que outrora muito contemplou, ao ver um rosto divino ou um corpo que bem encarna a beleza, sente certa estranheza e um pouco da antiga emoção e volta, pois, a olhar este belo corpo, adora-o como adoraria um deus. E, se não tivesse receio de ser considerado monomaníaco, ofereceria sacrifícios ao objeto do seu amor como a um deus. Quando contempla o seu amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre: modificam-se-lhe as feições, o suor poreja em sua fronte e um calor estranho corre pelas suas veias. Logo que percebe, através dos olhos, a emanação da beleza, sente esse doce calor que alimenta as asas da sua alma. Esse calor derrete os entraves da vitalidade, aquilo que, pelo endurecimento, impedia a germinação. O afluxo do alimento produz uma espécie de intumescência, um sopro de crescimento no corpo das asas. Esse ímpeto vai se espalhar por toda a alma.
Esta, quando as asas começam a desenvolver-se, ferve, incha e sofre da mesma maneira como padecem as crianças que, ao lhe nascerem novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas. Também a alma freme, padece e sente dores, ao lhe crescerem as asas. Quanto contempla a beleza de um belo objeto, e dele provêm corpúsculos que saem e se separam – o que gera a vaga de desejo (himeros), a alma encontra então o alívio para as dores e a alegria. Mas, quando está separada do amado, fenece. E as aberturas pelas quais saem as asas também contraem e, fechando-se, impedem a saída da asa, que, presa no interior juntamente com a vaga do desejo a palpitar nas artérias, faz pressão em cada saída sem abrir caminho. Deste modo a alma toda, atormentada em seu próprio âmago, sofre e padece, e no seu frenesi não encontra mais repouso. Impelida pela paixão, ela se lança à procura da beleza. Quando a revê ou a encontra de novo, reabrem-se-lhe os poros. A alma respira novamente e já então não sente o aguilhão da dor e goza, nesse momento, da mais deliciosa volúpia. Por isso não a abandona voluntariamente. Nada tem mais valor para ela do que a beleza. Esquece mãe, irmãos e os amigos. Nem se preocupa com a fortuna perdida, nem respeita as leis e os bons costumes; está disposta a ser escravizada pelo amado e ao seu lado dorme tão próximo quanto o permitirem os outros. Ela adora aquilo que ostenta beleza, pois nela encontrou o remédio às maiores doenças. Os homens, belo jovem a quem se dirige o meu discurso, chamam a tudo isso de amor mas, ao ouvir como os deuses o chamam, talvez te rias, devido à tua pouca idade. Creio que alguns Homéridas recitam dois versos sobre Eros: o segundo dos quais, embora não seja de prosódia muito elegante, é o seguinte:
“Os mortais o chamam de Eros, o deus alado. Os imortais, de “Pteros”, por fornecer asas”.
Pode-se aceitar ou não, mas a verdade é que isso explica a paixão dos amantes e sua causa. Um companheiro de Zeus é capaz de suportar mais facilmente a perturbação causada pelo deus alado. Os companheiros de Ares, com o qual fizeram a rotação, sendo atacados por Eros e crendo que pelo amado são injuriados, são tomados de fúria assassina e sacrificam-se a si próprios e aquilo que amam.
E assim sucede a respeito de cada deus. Cada humano adora o deus de quem foi companheiro. Imita-o como pode enquanto não está pervertido e enquanto aqui vive, depois do primeiro nascimento. Assim, todos imitam o seu deus nas relações amorosas e nas outras. Cada um escolhe o seu amor de acordo com o respectivo caráter e passa a vê-lo como seu deus, eleva-lhe uma estátua no seu coração, enfeita-o para adorá-lo e celebra os seus mistérios. Os companheiros de Zeus buscam alguém que tenha alma semelhante a Zeus. Avaliam se ele tem viés de filósofo e de chefe, e quando encontram o que desejavam, tudo fazem para nele desenvolver os dons desse deus. Se antes não viviam sob o signo desse deus, agora dedicam-se inteiramente a cultivar as qualidades do deus e muito trabalham para aperfeiçoá-las pelo ensino, com toda energia. Outros procuram descobrir em si o caráter do seu deus e, se o conseguem, a isso se entregam. Quando o conseguem apanhar pela lembrança, são tomados de entusiasmo e põem-se a imitar, tanto quanto é possível ao homem, os hábitos e costumes divinos. Considerando o amado como causa desse fado, passam a amá-lo ainda mais.
Se tiram o seu alimento de Zeus, como as Bacantes, eles o espalham sobre a alma do objeto amado e a fazem tanto quanto possível semelhante à do seu deus. Os seguidores de Hera procuram alguém que possua qualidades régias e, encontrando-o, também em tudo se comportam como reis. Os seguidores de Apolo e de cada um dos outros deuses também regulam seu procedimento conforme o deus a quem seguiram. Imitam-no, persuadem os amantes, convencendo-os e conformando-os ao costume e exemplo dos seus deuses.
Em vez de sentirem inveja do amado, esses amantes fazem tudo para tornar os seus amados semelhantes a eles mesmos ou aos deuses que adoram. É desse zelo que estão animados os verdadeiros amantes. Se conseguem que o amado divida com eles o mesmo interesse, o mesmo amor, a sua vitória é, ao mesmo tempo, uma iniciação. O amado que se deixa conquistar por um amante que delira assim, entrega-se a uma nobre paixão que será, para ele, uma fonte de felicidades. É assim que tem lugar também desse modo.